quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O caminho desviado do comum dos homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol, Pedro Eiras

 O caminho desviado do comum dos
homens – Parménides em Maria Gabriela
Llansol

Pedro EirasUniversidade do Porto

1. O que é ouvir?
Ninguém se dispõe a ouvir ao acaso. Quando se ouve, convoca-se a voz, cria-se
aquele que diz. Mais ainda quando a voz chega em fragmentos, quase agramaticalidades.
Por exemplo – mas não é um exemplo ao acaso, o exemplo não existe, é um
de-propósito, uma audição criadora – por exemplo: ouvir Parménides. Mas para que
deveríamos, por que ousaríamos ouvir esse balbucio quase ininteligível, certamente
intraduzível? Intraduzível pois, como diz Barbara Cassin (1998: 9), a tradução do Poema
de Parménides é inacabável: a sua escuta é infinita, convocando sempre a reescrita.
Ouvir é reescrever. Heidegger, que definiu a ideia de apelo, de chamamento, conhece
essa inevitabilidade – mas lamenta-a:
“todo o pensamento tardio que tenta estabelecer um diálogo com o pensamento
antigo não pode senão ouvir o silêncio do pensamento antigo do próprio lugar onde
ele mora e trazê-lo assim até um dizer. Certamente assim não se pode evitar que o
pensamento antigo seja integrado num falar recente” (1954: 287-288)
Aquém do tom disfórico, da denúncia do discurso híbrido, da vontade (quão
paradoxal e desmentida em Heidegger, que faz todos os autores antigos falarem heideggerianamente)
de ouvir a voz grega na sua pureza irredutível, devemos perguntar-nos,
por dúvida metódica: não como ouvir Parménides – mas simplesmente: para quê ouvir
Parménides? Que nos pode dar o seu Poema, os seus fragmentos, que o presente não
nos dá ou, para escrever com as palavras de Heidegger, que o presente esqueceu?
Como preservar, nessa audição, a fidelidade e o diálogo? Mas acaso há que ser fiel?
Em Inquérito às Quatro Confidências, Maria Gabriela Llansol escreve: “A terceira
confidência / é que não há contemporâneos, mas elos de ausências presentes; há
um anel de fuga. Na prática, é uma cena infinita – o lugar onde somos figuras.”
(1996: 48). Curiosa afirmação num diário, que dizemos, estereotipadamente, escrita
do presente e da presença, registo do real aqui-e-agora, real do próprio dia, real da
véspera tornando-se já passado, já irreal. Mas se não há contemporâneos, afastam-se
para um limbo incerto as pessoas ditas neste diário, e em especial Vergílio Ferreira, seu
núcleo magnético. Ora, esta revisão parece apenas servir para alargar a presença a um
infinito em que entrará, poucas páginas depois, Parménides. Afasta-se a concepção de
um presente tangível para pensar uma “cena infinita”, mais aberta. De resto, a citação
avança afirmativamente, com os verbos “há” e “é”, que parecem já uma citação do
Poema grego: não há recusa do ser, há atenção ao distante – e à distância de quem
está tão próximo.
Parménides será citado, partilhado, traduzido; palavras do Poema, como
a forma “há”, serão trabalhadas por Maria Gabriela Llansol. Mas antes, e durante, e
depois – haverá também o diálogo com Vergílio Ferreira. Não estabeleço ainda relação
entre o romancista contemporâneo e o filósofo antigo, a não ser a contiguidade
sintagmática; mas já sabemos quão significativo é o sintagma. Ora, quem é Vergílio
Ferreira em Inquérito às Quatro Confidências? Eis o que lhe diz a narradora:
“– Só sei que não sei essa forma de saber a que se refere, Vergílio – respondo-lhe.
Como dizer-lhe que não sei, que o saber-saber entorpece, que receio o saber,
os esquemas e as explicações, que o homem não dispõe de corpo para imaginar o
universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas que está aqui, caminhando no há
que há?...” (1996: 60)
Há outro grego nesta página, claro (na verdade, há uma multidão de vozes): “Só
sei que não sei” convoca Sócrates, do mesmo modo que “caminhando no há que há”
reivindica Parménides. Há a afirmação do “há”, e há também a negação de um saber
que equivale a não-saber, ou a não-ser. Sem querer avançar depressa demais, lembraria
o fragmento II de Parménides, onde se dizem as duas vias de pesquisa a pensar:
Um, [aquilo] que é e que [lhe] é impossível não ser, é a via da Persuasão (por ser
companheira da Verdade); o outro, aquilo que não é e que forçoso se torna que não
exista, esse te declaro eu que é uma vereda totalmente indiscernível, pois não poderás
conhecer o que não é – tal não é possível – nem exprimi-lo por palavras. (Parménides,
cf. Kirk, Raven e Schofield 1957: 255)
A segunda via é errónea e triste, num sentido de tristeza que Llansol colhe da
Ética de Espinosa: é uma via errónea porque triste. Ora, o erro encontra-se no saber
atribuído a Vergílio Ferreira. A segunda via é a do “saber-saber”, modo tautológico e
metareflexivo de dizer a tristeza e o abismo da consciência consciente da sua própria
consciência (mais um nome aqui para o dialogismo: Fernando Pessoa, Aossê no texto
llansoliano).
Dito assim, o duplo (ou infinito) acolhimento em Llansol tem um sentido: Parménides
é uma resposta a Vergílio. Sim: a ordem da pergunta e da resposta nada deve à
ideia banal de cronologia. No “há” llansoliano, as vozes encontram-se numa sincronia
capacitante de diálogo – ou, para usar um termo da música erudita, num cluster em
que todas as melodias e harmonias permanecem disponíveis, em latência. Ouvir é
deixar advir música dessa sobreposição: “eu poderia escrever sobre os problemas do
tempo em que vivemos mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imagens” (1996: 28). Des-datar
o passado de Parménides no presente dialogante do “há”, mas desde que se des-date
O caminho desviado do comum dos homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol
também o presente ilusório de Vergílio Ferreira num reencontro com o ser além da
cronologia.
Des-datação fiel, mas não pura, não asséptica. Desde as primeiras páginas de
Inquérito às Quatro Confidências, um torvelinho entra pela janela e polui a casa. Ei-lo
entre as páginas 9-10, mas regressando na 63, na 144, na 151, devindo um torvelinho
de luz quase no fim do texto, página 183. Surge na primeira página que tem o nome
“Vergílio”; e a autora diz escrever sobre o torvelinho: não acerca dele, mas por cima
dele, como se o torvelinho substituísse a folha lisa de papel – a questão da lisura
voltará mais adiante. Não interessa retirar à habitação esse sinal de hibridez, essa forma
aberrante na civilização, esse aparente não-ser. Porque, na verdade, o texto diz que
só o torvelinho, híbrido, indefinível, intratável, é o lugar da quimera e do verdadeiro
“há”: só a limpeza, a intervenção da razão do homem contra a natureza constituem
a negatividade. Que isto é verdadeiro, mostra-o uma referência, no fim de Inquérito
às Quatro Confidências, à doença dita das vacas loucas: é precisamente a razão, e
não a ausência dela, que leva os animais à extinção – como leva Vergílio Ferreira à
tristeza. Pelo contrário, a autora escreve: “No há que escolhi, / a minha espinha dorsal
é o júbilo.” (1996: 72).
A pergunta de Vergílio Ferreira encontrará resposta no século V a. C. (e esta
formulação precisa, claro, do verbo no futuro do indicativo). Por que devemos ouvir
Parménides? Porque ele responde a questões que nós ainda nem formulámos. Isto
significa que o ouvimos na sua pureza? Não: significa que o reescrevemos. Nenhuma
impostura em Inquérito às Quatro Confidências, aliás; a autora define o seu programa:
“Vou cruzar o canónico com o apócrifo.” (1996: 67), e certamente nunca saberemos
(interessaria saber?) onde há canónico e onde há apócrifo.
Mas Maria Gabriela Llansol reintroduz o dialogismo mesmo onde a escrita
ameaçaria cristalizar. Um exemplo. Lembre-se que Nietzsche, aliás figura llansoliana
desde O Livro das Comunidades, acusa Parménides em A Filosofia na Idade Trágica
dos Gregos: “é um profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo” (1873:
57). Poupa-o aos maus tratos reservados a Platão, mas denuncia em Parménides a
propensão para o abstracto, o descrédito conferido aos sentidos, o desinteresse em
geral pelo fenómeno. Para Nietzsche, em suma, “Parménides e Zenão (...) partem do
pressuposto absolutamente indemonstrável, ou mesmo improvável, de possuirmos na
faculdade conceptual o decisivo critério supremo acerca do ser e do não-ser, isto é,
acerca da realidade objectiva e do seu contrário” (ibidem: 75).
O “há” llansoliano não é, como o de Parménides, coeso, se por coesão se entender
a ausência de diferença; pelo contrário, a diferença é celebrada como acontecimento. Eu
diria assim: perante a disforia de Vergílio, Llansol prefere ouvir o “há” de Parménides;
mas perante o horror ao fenómeno em Parménides, Llansol procura ouvir o sim à
vida de Nietzsche. A audição é um trabalho de construção, fora do tempo e cheio
de júbilo.

2. Quando vou, quem me conduz?
Estou na cena de leitura, a narradora e Vergílio Ferreira conversam. Subitamente,
outra voz irrompe, citada:
“«as éguas que me conduzem levaram-me tão longe quanto o meu coração podia
desejar».
– Gabriela, mas esse é o início do poema de Parménides!
«arrastaram-me…»
– Sim.
«pelo caminho que abunda em revelações do deus
o caminho que leva o homem que sabe
foi por ele que fui levado pelas éguas prudentíssimas
mulheres jovens indicavam-nos o caminho»
– Deixe-me traduzir.
– Traduza.
«quando as Filhas do Sol, deixando para trás as moradas da noite, estugavam o
passo para correr na luz do dia, afastando com as mãos os véus que lhes cobriam a
cabeça»
– Atavam à cintura os xailes da mente.
– É bem provável!” (Llansol 1996: 56)
É o proémio (hoje o designado fragmento I) do Poema de Parménides. Dele a
Antiguidade disse que tinha um valor poético suspeito e que era escusado como intróito
a um texto filosófico. Mas a interpretação deste fragmento faz correr rios de tinta.
Talvez tenha reminiscências de xamanismo ritual arcaico, hoje incompreensíveis (Kirk,
Raven e Schofield 1957: 253). Por outro lado, parece ser um palimpsesto de Homero e
Hesíodo; a Odisseia, em particular, constituiria um hipotexto poderosíssimo no Poema
de Parménides, onde a aventura do ente é construída sobre a aventura de Ulisses
(Cassin 1998). Quanto a Sexto Empírico, no século II d. C., interpreta este fragmento
a partir de uma matriz platónica: as éguas são as pulsões da alma, as mulheres jovens
são os sentidos. Barbara Cassin mostra como esta leitura só pode ser suportada numa
montagem ad hoc dos fragmentos (1998: 16), que inventa um certo Parménides à luz
do racionalismo posterior, do mesmo modo que Heidegger ou Nietzsche criarão os
seus Parménides, adjuvantes ou oponentes próprios.
Em Maria Gabriela Llansol, o fragmento é em primeiro lugar uma voz entrosada
em duas vozes, o terceiro lugar que permite o diálogo, o pretexto talvez para um
jogo de infância (“Deixe-me traduzir”, como quem dissesse: deixa-me jogar, agora é a
minha vez), talvez para uma revisão onde Nietzsche se adivinha (“«(...) afastando com
as mãos os véus que lhes cobriam a cabeça» / – Atavam à cintura os xailes da mente.”).
Seja como for, é claro que a emergência do Poema de Parménides não é um encaixe
na narrativa, mas que este fragmento descreve também o diálogo entre a narradora
e Vergílio Ferreira, recorda toda a vivência em torno do “há” das páginas anteriores,
anuncia as indagações e confidências das páginas seguintes. É o Inquérito às Quatro
Confidências que emerge no Poema de Parménides, que ele paradoxalmente contém,
assim dividido em traduções interrompidas e partilhadas, fragmentos dos fragmentos.
E não se trata de um trabalho intelectual (o repelido “saber-saber”), mas de uma troca
dominada pelo corpo e pelo júbilo. Os xailes da mente ficam atados à cintura.
O diálogo continua:
O caminho desviado do comum dos homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol
“Sabe os nomes das jovens que o conduzem?
– Que me conduzem?
– Não é o Vergílio que vai sobre o carro, ao encontro do deus?
– Em primeiro lugar, não é um deus, mas uma deusa. A Justiça. Em segundo lugar,
não sei se sou eu. Mas se for?
– Se for, chamam-se Bárbara, Mónica, Sandra…
(...)
– E… se eu for o Jovem, a Gabriela quem é?” (Llansol 1996: 57)
Questão da identidade, como noutros lugares deste livro: “o segredo estético
dessa luz faz-me pensar no elo subtil com que ela se articula ao meu pensamento.
Hei-de perguntar-lhe por que me leva assim _________ / e quem é?” (1996: 22).
Mesmo a quarta confidência “é sobre o desejo e a repulsa da identidade.” (1996: 48).
Desejada e repelida, a identidade nem sempre serve, mas insiste em regressar. Ela
serve quando o ouvinte contemporâneo precisa de perceber como era já sobre ele
e para ele que Parménides escrevia o Poema. As jovens, por exemplo, não são aqui
os sentidos, secundarizados por Platão, mas as personagens de Vergílio: tal como o
próprio Inquérito… se encaixa no Poema, assim as personagens – Bárbara, Mónica,
Sandra – guiam o criador. O autor escreve, mas para ser conduzido. É a escrita que o
inventa como Jovem; o Vergílio Ferreira do Inquérito… não compreende isto, replica:
“– Por que haveria de ser eu o Mais Jovem – se é um facto que estou velho?”, e a
narradora não pode senão responder: “– Vergílio ________” (1996: 58), num traço que
é também uma ausência presente significativa.
A identidade é o que permite ao ouvinte devir o Jovem do Poema. A identidade é
o devir – talvez aqui a sintaxe do ser seja mais a de Heraclito do que a de Parménides.
Contra um “há” demasiado violento no seu monologismo, Llansol pode escolher outra
voz, que é também ausência de voz: “Não vou perguntar: «quem falta?» Sou eu que
falto, o fragmento por que suspiro, e que está suspenso fora de mim.” (1996: 24).

3. Há.
Em Parménides, a primeira via é a única transitável. Nenhuma reticência: o ser é
completo, sem nascimento, sem morte, perfeito; Parménides cria um monismo (Kirk,
Raven e Schofield 1957: 259). Lembre-se o começo do fragmento VIII do Poema:
De um só caminho nos resta falar: o do que é. Neste caminho há indícios em grande
número de que o que é ingénito e imperecível existe, por ser completo, de uma só espécie,
inabalável e perfeito.”
“Nunca foi nem será, pois agora é como um todo, um só, contínuo. Pois que origem
lhe poderás buscar? Como e donde nasceu? Não te permitirei que digas ou que penses a
partir do que não é. (Parménides, cf. Kirk, Raven e Schofield 1957: 259-260)
Para encontrar em Llansol a mesma unidade do ser, devemos procurar a libido,
aquele eros que está no diálogo e não no monologismo, na cintura e não na mente,
“a libido da pujança que afirma e não divide nem separa.” (Llansol 1996: 38). O que
não divide nem separa é, desde o início do texto, um verbo: “eu vou” (1996: 7), ou,
mais adiante: “há” (1996: 42). Porque o “há” nada deve ao tempo:
“– Como o há é exterior e anterior aos mundos, há e há-sempre é a mesma coisa,
como aqui e ali,
como houve, há e haverá.
(...)
– Se assim for, entre houve e há, por exemplo, haverá sobreimpressão.” (1996: 66)
Deste “há”, que é o resultado de todas as sobreimpressões – o cluster de todos os
clusters – Llansol pode dizer o que diz Parménides do ser: que ele não nasceu nem
morrerá, que não carece de nada. E mesmo esta formulação é demasiado negativa;
sobre o há deveríamos ficar em silêncio.
Ficar em silêncio, mas não imóveis: “eu vou”, em Llansol, propicia eros. Mesmo
se Zenão, discípulo de Parménides, acaba por negar a existência do movimento.
Talvez Llansol reveja Parménides-Zenão neste ponto; e poderíamos aproximar ideias
contrárias que foram ficando pelo caminho. Eis o lugar de encontro: “Não era eu
que estava ali – sabei; eu não sou nada, vivo perfeitamente no nada ______ só que,
à minha volta, é tudo há.” (1996: 119). É como se o lugar “à volta” fosse o “é” de
Parménides, e a narradora o seguisse de cada vez que Vergílio Ferreira insistir na
tristeza; mas assim que, na sua solidão, não precisar de enfrentar o peso destrutivo
do não-ser da tristeza, a autora assumirá novamente que ela mesma é apenas nada,
falta de identidade. Parménides é portanto revisto por uma forma de teologia negativa.
Ou será que, como em Simone Weil, o sujeito quer ser nada para que Deus alcance
o mundo sem obstáculo?
“Já não sou a jovem que espera por um noivo, mas o terceiro elemento importuno,
que está com os noivos e se deve ir embora de modo a que fiquem verdadeiramente
juntos.
Se soubesse simplesmente desaparecer, haveria conciliação perfeita entre Deus e a
terra por onde caminho, o mar que oiço…” (Weil 1947: 46)
O ente perturba o ser. Llansol di-lo-á também, mas talvez sem desejo de se retirar:
“Quando nos apercebemos que o há é há, não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe
um ver criador ______ criamos, modificando-lhe a paisagem.” (1996: 168).
A narradora é nada, mas o nada que ela é, cercado de “há”, cria, escreve. Sem
apropriação do mundo, mas sendo o incerto funâmbulo da consciência do universo
(1996: 169). E também sem terra firme, mas com a segurança técnica da “artesã” (ibidem:
170). Porque a escrita, ou intervenção no “há” que afinal não é uno nem definitivo,
se diz como transformação desejada, prevista, salvífica:
“– Vergílio!
– Sim?
– Vamos mudar a cor e a grafia do A de Rimbaud? Lembra-se do que ele escreveu?
«A estrela choveu rosa no coração do teu ouvido atento / O infinito rolou alvo no teu
corpo, da nuca aos rins / O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre / E o
Homem sangrou negro no teu flanco sem fim».
– Ele identifica o A negro e o Homem.
– Sim. E o alvo com o infinito. (...)
– E como ficaria?

Há.” (Llansol 1996: 41-42)

O caminho desviado do comum dos homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol
O texto avança mais depressa do que parece. Porque elide um poema de Rimbaud,
“Vogais”; só por seu intermédio se compreende que o A seja negro – e quanto à
valorização negativa dessa cor (cf. também: “Eu não pertenço ao A negro que tem
este mundo em seu poder.” (Llansol 1996: 50)), devemos procurá-la na idiossincrasia
llansoliana, não em Rimbaud. Por outro lado, o facto de aquela quadra rimbaldiana
coabitar no livro com o Poema de Parménides obriga a reler os dois textos em
conjunto. Na leitura llansoliana de Parménides, o xaile desce da mente para a cintura;
no poema de Rimbaud, o infinito rola da nuca para os rins. De passagem, o verbo
rolar é substituído pelo sinónimo “girar” e ganha traços de programa nesta frase de
Llansol: “– Escrevo para girar de A em Há, rodopiar com as vibrações que sobem
e nos elevam até ao lugar em que já não podemos descer, nem evadir-nos – o Há
sobre o Há.” (1996: 51).
Por outro lado, no último verso da quadra, Rimbaud escreve: “Et l’Homme [a]
saigné noir à ton flanc souverain.” (1871: 50), que Llansol traduz assim: “E o Homem
sangrou negro no teu flanco sem fim”, insistindo no sema do infinito, já evidente no
segundo verso. Ora, em Parménides, não só não se pode falar do não-ser, pois ele
não é, mas ainda o ser é finito: “é justo que o que é não deva ser imperfeito; pois de
nada precisa – se assim não fosse, de tudo careceria.” (Parménides, cf. Kirk, Raven e
Schofield 1957: 263); na descrição do ente como limitado haveria uma reminiscência
do episódio da Odisseia em que Ulisses é preso ao mastro (Cassin 1998: 55). Não
sabemos quem ou o que é o “tu” do poema de Rimbaud; sabemos que o seu flanco
é, não souverain, mas sem fim: revisão llansoliana de Parménides?
Resta ver que o A negro se transmuda em Há, a vogal torna-se ser, ou contrai um
pacto com o H de Homem. Desse H só podemos aperceber-nos pela escrita, como
ficou claro: “– Escrevo para girar de A em Há”. As próprias gaivotas gritam assim em
Inquérito às Quatro Confidências: “há há há” (Llansol 1996: 63).

4. Não ser não é.
O pacto com o “há” recusa o pacto com o mero pensar, ou o “saber-saber”. Llansol
não cita – e certamente recusaria – a ideia de Parménides que Heidegger mais glosa:
a identidade entre pensamento e ser. Eis como se opera a recusa da razão soberana.
Vergílio Ferreira comenta: “– A Gabriela está a mudar de escrita”, e a narradora responde:
“– Talvez o equivalente, no tempo dos verbos, ao infinito que se dobra e flecte sem
pensar na morte, nem fazer metáforas.” (Llansol 1996: 35). Voltaremos à ideia de morte;
por ora, vejamos que há aqui um não-pensar que não implica qualquer ausência de
ser – pelo contrário. Há, sim, o há infinito que se dobra.
Curiosamente, Heidegger recorre à mesma ideia de Dobra (1954: 289), com maiúscula,
para descrever, a partir de Parménides, o ser enquanto duplo, isto é, enquanto ser
e ente ao mesmo tempo; o dizer seria o fazer-aparecer da coisa presente exposta.
O desdobramento da Dobra geraria o desvendamento ou, no termo recuperado por
Heidegger, aleteia, que o filósofo descreve com o exemplo do discurso da deusa, no
primeiro fragmento de Parménides (ibidem: 299). Mas em Llansol a dobra do infinito
verbal não deve ser desdobrada: nenhuma aleteia se lhe seguiria. A dobra deve,
pelo contrário, ser novamente dobrada, redobrada, reduplicada infinitamente. Contra
o desdobramento heideggeriano, Inquérito às Quatro Confidências pede um dobrar
deleuziano, capacitante, infinito (cf. Deleuze 1988).
Três últimos exemplos de diálogo, talvez não sempre explícito, com Parménides.
O primeiro remete para o fragmento II, já aqui referido, que distingue as duas vias
de pesquisa, a primeira certa, afirmando o é e recusando o não-é, a segunda errada,
afirmando o não-é. Depois do texto de Parménides, depois do comentário da narradora
sobre as duas vias (“Não acha que é a eterna guerra dos gregos entre o sólido e o
líquido?” (Llansol 1996: 65)), encontramos este pequeno episódio: “estendi, na pequena
mesa da casa de banho, uma toalha por passar, a substituir a anterior, também branca,
mas já suja e enodoada; reparei que preferi o limpo ao liso. «Não é esta a primeira
via», pensei.” (Llansol 1996: 65). Isto é, quem recusa o sujo, quem recusa escrever
sobre o torvelinho – não está na via do ser. Ora, a via em que convém seguir é “a via
do há que tenha aura”, quer dizer, “O limpo branco sobre o não engomado branco.”
(Llansol 1996: 66). Correcção paradoxal, difícil de ler. Reabilitação final do branco, do
limpo? Mas nesse caso, sobre o não engomado que resiste, isto é, a toalha engelhada,
a dobra.
O segundo exemplo decide explicitamente a favor da dobra. É um comentário
metatextual quanto ao “irritante traço contínuo” (1996: 75) dos textos llansolianos:
“Se eu pretendesse escrever um texto sempre limpo – tiraria o traço. Onde não
soubesse, nada escreveria. Mas como iria saber que ali não soube, ou nem sequer
me pertencia saber? O texto é limpo, e por passajar. Onde o traço é apagado, vê-se
claramente o raspar da borracha. Deixar o traçado.” (ibidem)
Gloso com algum risco esta passagem difícil: o texto não deve ser limpo, logo o
traço deve permanecer; mas mesmo que se apagasse, o raspar da borracha lembraria
a diferença, a dobra; e contudo, por mais dobrado que seja o texto, ou o mundo, ou
a toalha, eles são o “há” e nesse sentido inteiramente limpos: “O texto é limpo, e por
passajar”, o texto é limpo precisamente porque fica sempre por passajar. A este nível,
o diálogo com Vergílio Ferreira volta a instaurar violência: “Diz-me o meu companheiro
filosófico que faça um Diário ininterrupto, que me deixe de tracejados, antes que se
perca o lugar de onde vou para onde vim.” (Llansol 1996: 112).
Mas é o terceiro exemplo que decide deveras sobre o que há e o que não há.
Não me proponho comentá-lo, apenas citar algumas frases. Citar este fragmento de
Inquérito às Quatro Confidências, depois da morte de Vergílio Ferreira: “agora, que
não mais o verei face a face”, na página 133. Citar esta frase dos cães a Maria Gabriela
Llansol: “«Cumpre a tua parte do contrato»”, na página 137. E por fim, na última página
do livro, este breve diálogo:
“– Gabriela!
– Sim!
– Ver-nos-emos face a face, daqui a milhões de anos.
– Sim!
– Faça a sua parte! Sem medo, sem medo, sem medo.” (1996: 184)

O caminho desviado do comum dos homens – Parménides em Maria Gabriela Llansol


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