terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Eurídice, as Sereias & la pensée du dehors: Foucault lê Blanchot. Vera Lima

Eurídice, as Sereias & la pensée du dehors: Foucault lê Blanchot. 
por Vera Lima


(...)

2.2. os ensaios de Blanchot: o olhar de Orfeu e o canto das sereias

2.2.1. o olhar de Orfeu:
Orfeu consegue persuadir as trevas e descer até elas, para resgatar Eurídice, através de sua arte, de seu canto. Segundo Blanchot, nesse momento, a noite é hospitaleira, aceita o pedido de Orfeu, desde que este se disponha a obedecer a o interdito que ela impõe de não olhar para o rosto Eurídice, enquanto a conduz pelos corredores da escuridão, até alcançar o dia outra vez.
Mas Orfeu engana as trevas, pois sabe que trazer Eurídice para a luz do dia significa descer ao fundo de uma outra noite, aquela insondável, que retém o segredo da arte, e também da morte e da origem. É lá que pretende encontrar a inspiração para o canto que virá. Deixemos falar Blanchot:
"Quand Orphée descend vers Eurydice, l'art est la puissance par laquelle s'ouvre la nuit. La nuit, par la force de l'art, l'accueille, devient l'intimité accueillante, l'entente et l'accord de la première nuit. Mais c'est vers Eurydice qu'Orphée est descendu: Eurydice est, pour lui, l'extrême que l'art puisse atteindre, elles est, sous un nom qui la dissimule et sous un voile qui la couvre, le point profondément obscur vers lequel l'art, le désir, la mort, la nuit semblent tendre. Elles est l'instant où l'essence de la nuit s'aprroche comme l'autre nuit.
Ce "point", l'oeuvre d'Orphée ne consiste pas cependant à en assurer l'approche en descendant vers la profondeur. Son oeuvre, c'est de le ramener au jour et de lui donner, dans le jour, figure et réalité. Orphée peut tout, sauf regarder ce "point" en face, sauf regarder le centre de la nuit dans la nuit. Il peut descendre vers lui, il peut, pouvoir encore plus fort, l'attirer à soi et, avec soi, l'attirer vers le haut, mais en s'en détournant."
(BLANCHOT, M. Le Regard d'Orphée. p. 179)
Apesar disso, Orfeu se vira em direção ao "ponto" proibido.
Ao fazê-lo, aparentemente, trai não somente sua obra, mas também Eurídice e a noite. No entanto, mantém-se fiel a seu desejo de ver o coração da noite: no fundo, foi para isso que desceu aos infernos.
O dia censura o ato de Orfeu: entretanto, Orfeu nunca deixou de estar com o olhar direcionado a Eurídice. Blanchot nos diz que:
"...il l'a vue invisible, il l'a touchée inatcte, dans son absence d'ombre, dans cette présence voilée qui ne dissimulait pas son absence, qui était présence de son absence infinie." (p.180)

O dia censura a impaciência, o descuido, a impetuosidade do desejo de Orfeu; seu erro foi transgredir o limite ao qual estava confinado, o de só cantar Eurídice, não tentar vê-la ou desejá-la. E no entanto, esse desejo e a possibilidade da perda de Eurídice são necessários à obra. Para Blanchot:
"Il perd Eurydice, parce qu'il la désire par delà les limites mesurées du chant, et il se perd lui-même, mais ce désir et Eurydice perdue et Orphée dispersé sont nécessaires au chant, comme est nécessaire à l'ouvre l'épreuve du désoeuvremente éternel." (p.181)
Isto é, a transgressão, que ocorre como decorrência de um desejo desmesurado de Orfeu e de uma impaciência que o fazem esquecer a interdição, é parte da obra mesma: é aí que reside a possibilidade da inspiração.
"Regarder Eurydice, sans souci du chant, dans l'impatience et l'imprudence du désir qui oubli la loi, c'est cela même, l'inspiration." (BLANCHOT,p.182)
Mas a inspiração não garante nada: nem o sucesso da obra, nem a sobrevivência de Orfeu ou de Eurídice. Ao contrário: da inspiração, só conhecemos o fracasso. No entanto, é da inspiração que vem a revelação da insignificância e o vazio da noite, e para Orfeu, renunciar à inspiração seria um fracasso pior. Nas palavras de Blanchot:
"Mais si l'inspiration dit l'échec d'Orphée et Eurydice deux fois perdue, dit l'insignifiance et le vide de la nuit, l'inspiration, vers cet échec et vers cette insignifiance, tourne et force Orphée par un mouvement irrésistble, comme si renoncer à échouer était beacoup plus grave que renoncer à réussir." (p. 182)
Por tanto, o olhar o faz perder a obra, mas também ultrapassá-la.
A obra é tudo para Orfeu, a coisa mais importante, mas no momento do olhar, algo a supera – e é aí que ela "pode se unir a sua origem e se consagrar na sua impossibilidade". Ele a sacrifica pela desmesura de seu desejo, a remete à origem.
O evanescimento de Eurídice, seu desaparecimento, o vislumbrar do vazio, é o "nada", o "branco" diante do papel: diante de todo começo de obra, há esse eclipse orfeico.
Orfeu transgride a lei num movimento de descuido, de leviandade, negligência e com isso transforma o sagrado em inessencial. A noite do pré-olhar mantém o cantodentro dos limites e o torna mais augusto, mais rico do que se tornará depois do olhar.
Mas a noite sagrada está também aprisionada pela força dos ritos. O olhar de Orfeu vem, portanto, liberá-la. A inspiração está, assim, ligada ao desejo, e também à impaciência e ao descuido, mas de tal modo que a impaciência, como fonte da inspiração, só possa brotar de dentro de uma ardente paciência. Orfeu teve que esperar o "momento certo" para se voltar em direção à Eurídice.
A arte inspirada começa na arte; para escrever é preciso já escrever.
***
A questão-chave desse ensaio é a inspiração. Mas a inspiração, como busca de originalidade, só poderá surgir num mundo onde a arte –a linguagem – tenha-se liberado do comando e das prescrições dos deuses, isto é, na modernidade. A arte clássica segue moldes e formas pré-estabelecidas, já que o que a comanda é a representação e portanto, no classicismo, a "boa" arte é aquela que, literalmente, melhor se en-quadra ao modelo representativo, "se encaixa no quadro".
Ao invés disso, o poeta moderno vai encontrar, na sua busca da inspiração, o vazio, o nada, o coração da noite, o impensado de Foucault. Não há mais temas pré-fixados a procurar, não há mais "sobre" o que cantar – escrever –, caíram-se as crenças. E assim, só resta à arte –à linguagem – voltar-se sobre si própria.
Nesse confronto com a ausência – de formas, de moldes, de temas, de tudo – o poeta poderá sucumbir a um grande desespero ou total inércia, não conseguir produzir nada. É o branco do papel, quando a linguagem recua e escapa, o eclipse orfeico.
É disso que Foucault fala quando, ao final do capítulo 8 de As Palavras e as coisas, se refere ao aparecimento da literatura como uma das três compensações que teve a linguagem ao ter seu status "rebaixado" à condição de "objeto", na transição da episteme clássica para a moderna. Nesse momento, segundo Foucault, eis que a linguagem ...
"...reaparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nemsonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor de seu ser."   FOUCAULT, M. (1992) p. 317. As Palavras e as coisas. 6. ed. brasil. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

É aí que ela, liberada do comando dos deuses, revela sua essência vaporosa, efêmera, cintilância não-sólida.
A impetuosidade, o desejo e o descuido levarão Orfeu à transgressão do interdito, à quebra da aliança com os deuses, à liberação de sua tutela, a uma liberdade que determinará a destruição de sua arte, isto é, da arte tal qual concebida pelos ritos e os comandos dos deuses, a arte da representação.

2.2.2. o canto das sereias
Blanchot abre Le Chant des Sirenes referindo-se ao lugar de onde provem o canto das sereias. Ponto de onde emanariam os cantos futuros, os cantos "verdadeiros", desperta nos navegantes que passam por perto dele, o desejo de alcançá-lo. Mas a região-mestre é árida, vazia de canto. O que aguarda os que obedecem a esse impulso é o desaparecimento.
"Les Sirènes: il semble qu'elles chantaient, mais d'une manière qui ne satisfaisait pas, qui laissait seulement entendre dans quelle direction s'ouvraient les vraies sources et le vrai bonheur du chant. Toutefois, par leurs chants imparfaits qui n'étaient qu'un chant encore à venir, elles conduisaient le navigateur vers cet espace où chanter commencerasit vraiment. Elles ne le trompaient donc pas, elle menaient réllement au but. Mais, le lieu une fois atteint, qu'arriverait-il? qu'était ce lieu? Celui où il n'ya avait plus qu'à disparaître, parce que la musique, dans cette région de source et d'origine, avait elle-même disparu plus complètemente qu'en aucun autre endroit du monde: mer où, les oreilles fermées, sombraient les vivants et où les Sirènes, prevue de leur bonne volonté, durent, elles aussi, un jour disparaître."  (BLANCHOT, M. Le Chant de Sirènes. p. 9) Le Livre a venir. Paris: Gallimard, 1995 (1.ed:1959).
Ao comentar sobre a natureza desse canto, Blanchot nos diz que ele é, ao mesmo tempo, inumano – se parece a um ruído – e extremamente familiar, pois reproduz o canto humano. Os homens que sucumbiram à sua atração o fizeram por um desespero deslumbrado, encantados ao reconhecer, na voz das divindades, a exaltação do cotidiano de suas vidas simples. E no entanto, abria um abismo engolfador aos que o escutavam.

"C'est donc par déséspoir qu'auraient péri les hommes passionnés de leur propre chant? Par un désespoir très proche du ravissement. Il y avait quelque chose de merveilleux dans ce chant réel, chant commun, secret, chant simple et quotidien, qu'il leur fallait tout à coup reconnaître, chanté irréllement par des puissances étrangères et, pour le dire, imaginaires, chant de l'âbîme qui, une fois entendu, ouvrait dans chaque parole un abîme et invatiat fortement à y disparaître." (p.10)
Ulisses vence as sereias utilizando-se de astúcia .
No entanto, é desse encontro com as sereias que nascerá a ode. São as sereias, e seu canto abismal que arremessa tudo ao desaparecimento, que obrigam Ulisses a compor a ode. E a ode é o que permanecerá.
Da astúcia de Ulisses em combater os deuses, não com armas divinas, mas humanas, nasceu o romance, o roman, isto é, a história de sua navegação, a aventura, onde o que importa é o percurso e não o destino final. O romance aparece como diversão, como "vagabundo", no sentido de "vagar pelo mundo".
Mas o récit, a narrativa, começa onde o romance falha. A narrativa é de um evento excepcional: o encontro com as sereias. Para que haja narrativa, Ulisses teve que passar pela experiência, sobreviver a ela e se transformar em Homero.
O récit não é o relato do evento, mas o próprio evento. Ele se desloca para um ponto que não existe previamente, mas que é, no entanto, imperiosamente, criado por ele.
Por isso, Homero teve que ser primeiramente, Ulisses. Isto é, Ulisses, para ser capaz de relatar, teve que ir ao lugar "onde o poder de falar e de narrar lhe parece prometido, desde que ele lá desapareça", e não desaparecer, conseguir "voltar".

É da escrita, da écriture, da possibilidade de escrever, que nos fala aqui Blanchot, e da auto-referência ou auto-reflexividade da linguagem na literatura.
Após ter conseguido atravessar o abismo do ponto cego, isto é, ter escutado o canto das sereias amarrado ao mastro, sobrevivdo à experiência da própria morte e constatado que além do vazio só há vazio, para Ulisses, nada mais resta a temer nem a venerar. Os deuses morreram porque podem ser vencidos pelo engenho humano. O mundo se dessacraliza, e com isso, se esvazia, se empobrece. E o que mais pode fazer Ulisses, se não há mais deuses a combater ou a temer, senão contar e recontar, cantar e recantar sua própria aventura.? É nesse quase-desdém, nessa negligência de quem crê que tudo perdeu, de quem não mais está preocupado em fazer a grande obra porque descobriru que do outro lado não há nada, somente o vazio, somente um murmurar interminável de vozes mal-ouvidas; nessa despreocupação que é um descaso, que a obra inspirada pode, eventualmente, nascer. Por acaso.
Quanto a Blanchot, não seria ele também, em sua obra ficcional, em seus romans e récits, um Ulisses que tendo experimentado o vazio, se transforma num Homero a relatar, incessantemente e de inúmeras maneiras, a experiência desse confronto, desse encontro com o mumrúrio borbulhante dessa fonte onde tudo nasce e morre, que Foucault chamará de ser da linguagem?
Ulisses transformado em Homero é aquele que efetivamente consegue escrever, porque resistiu, tomou distância do canto das sereias, apesar de tê-lo escutado. E o relato dessa experência, dessa resistência, desse confronto é o que diferencia o récit do roman, enquanto compêndio de aventuras.
Uma outra questão se vislumbra aí, mas não pretendo me adentrar muito nela, por ora. Trata-se de uma brecha para uma discussão sobre o confronto linguagem escrita- linguagem oral. O roman pode existir enquanto realidade da linguagem oral, isto é, de uma linguagem comunitária, uma linguagem governada e supervisionada por deuses, –ou por Deus– ou pelo homem no lugar de deus . Essa é a linguagem que veicula uma crença comum a todos – isto é, ao próprio, ao outro, ao mesmo – de pertencerem a um mesmo todo. Essa linguagem da crença pode permanecer sob forma oral ou pode ser registrada na forma escrita, para não se "perder".
A linguagem propriamente escrita pressupõe o desnudamente dessa crença na qual a linguagem oral se apóia. É no manuseio direto com o ser móvel e viscoso da linguagem, que aquele que se propõe a desfazer uma crença, se depara com a capacidade que a linguagem tem de sempre engengrar novas crenças. É por isso que desarticular um sistema de crenças poderia levar ao desespero ou a uma grande liberação e uma conseqüente proliferação de criações.
Talvez seja isso que Derrida diga quando afirma que a escrita antecede a fala, isto é, a linguagem antecede a língua, o sistema de crenças. Talvez esteja aí o germe da questão que, supostamente e segundo During, teria provocado Foucault a se agenciar com Blanchot, Klossowski e Bataille como forma de encontrar meios para contestar a uma crítica feita por Derrida a seu texto Folie et déraison.
Mas deixo isso para outra ocasião.


2.3. a leitura de Foucault: Eurídice & as Sereias
Foucault aproxima o Ulisses e o Orfeu blanchotianos, no item VI. Euridyce et les Sirenes, da Pensée du dehors.
Foucault dá ao canto das sereias a "imagem" de um oco, vazio escavado nas ondas do mar ou nas rochas. Elabora o ser desse oco, desse vazio, como a fonte de um apelo, de uma escuta, que só poderia ser de algo que fala, que atrai.
"Les sirènes sont la forme insaisissable et interdite de la voix attirante. Ellles ne sont tout entières que chant. Simple sillage argenté dans la mer, creux de la vague, grotte ouverte parmi les rochers, plage de blancheur, que sont-elles, en leur être même, sinon le pur appel, le vide heureux de l'écoute, de l'attention, de l'invitation à la pause?" (p.41)
O canto delas seduz porque promete um canto futuro; oferece um vislumbre de algo que "poderá vir a ser", que cintila no horizonte. Segundo Foucault, a sedução que elas produzem se dá em...
"...ce qui brille au lointain de leurs paroles, l'avenir de ce qu'elles sont train de dire. Leur fascination ne naît pas de leur chant actuel, mais de qu'il s'engage à être." (p.42)
E o que elas oferecem a Ulisses, isto é, àquele que as escuta, é a miragem da concretização de um desejo seu: o de ver suas glórias e aventuras cantadas em verso. Ou seja, o futuro que elas oferecem nada mais é do que o retorno do próprio passado do herói, redimensionado em outro tempo. Para Foucault, o canto das sereias ...
"...mais il ne promet rien d'autre au héros que le double de ce qu'il a vécu, connu, souffert, rien d'autre que ce qu'il est lui-même." (p.42)
Essa promessa é, ao mesmo tempo, falsa e verídica. Falsa, porque a morte é o que espera os que se deixam seduzir por ela. Verídica, porque é através da morte que o canto poderá se elevar e contar pela eternidade a aventura do herói.
Esse canto das sereias não pode ser escutado, é preciso renunciar sua escuta, para que se possa continuar a viver e portanto, a começar a cantar as glórias. Por outro lado, para que nasça o relato imortal, é preciso escutá-lo, nem que seja amarrado aomastro. Isso significa atravessar a morte para restitui-la numa outra linguagem, a da ode. Nas palavras de Foucault:
"il faut ..., souffrir toute souffrance en demeurant au seuil de l'abîme attirant, et se retrouver finalment au-delà du chant, comme si on avait traversé vivant, la mort, mais pour la restituer dans una langage second." (p.43)
Como contraste, temos a figura de Eurídice. Aparentemente, a situação é oposta a de Uisses, pois aqui, o canto é de vida, isto é, o canto de Orfeu é um canto capaz de seduzir, de fazer adormecer a própria morte. Mas o herói não resiste ao encanto que Eurídice detém consigo e sucumbe, fazendo de sua amada sua própria vítima.
E no entanto, Eurídice é parente próxima das sereias. De novo, é Foucault quem afirma:
"Et cependant, elle est proche parente des Sirènes: comme celles-ci ne chantent que le futur d'un chant, Eurydice ne donne à voir que la promesse d'un visage."(p.43)
Orfeu deveria ter-se acorrentado, como Ulisses, pois como era ao mesmo tempo, herói e equipamento, quando foi tomado pelo desejo, não teve outros recursos e sucumbiu.
Sendo assim, para os dois [Ulisses e Orfeu], a voz foi liberada: para Ulisses, com a salvação; para Orfeu, com a perda absoluta.
Mas é possível que sob o triunfo de Ulisses, reine a queixa de não ter vislumbrado totalmente as sereias, não ter escutado o canto até o fim. E sob a queixa de Orfeu, reine a glória de ter visto a face inacessível.
****
Quando afirmei acima que Foucault dá ao canto das sereias a "imagem" de um oco, vazio escavado, mantive a palavra "imagem" entre aspas por causa da ironia de se tentar fazer uma "imagem" de algo que, por definição, não teria imagem, não seria imaginável. Num certo sentido, essa tentativa é em si mesma uma transgressão – de Foucault, não minha. Pois Foucault vai mais além e ao elaborar o ser desse oco, desse vazio, como a fonte de um apelo, de uma escuta, que só poderia ser de algo que fala, que atrai, ele parece fornecer para seu ser da linguagem uma imagem que não é apenas a de um simples vazio, mas um vazio sorvedouro, como se a linguagem engolfasse, num furacão, num torvelinho, quem dela se aproxima.
Ao mesmo tempo, a natureza desse canto –a linguagem – consiste em forjar uma voz, que não é humana mas parece humana e que deixa entrever, ao se manifestar, algo que cintila e recúa. Essa voz in-humana é capaz de seduzir, aos que a ouvem, com a promessa de um canto futuro, que glorifique o passado.
Parece-me que Foucault retoma essa questão, por um ângulo um pouco diferente, no item VI. O recuo e do retorno da origem, do capítulo IX de As Palavras e as coisas.
Ali Foucault fala do tempo, da busca da origem e se refere ao fato do homem sempre nascer numa linguagem já começada. Não seria recuo da origem, uma promessa similar a do canto das sereias, sempre recuada, sempre apontando para um além-de-si?
"E assim, nessa tarefa infinita de pensar a origem o mais perto e o mais longe de si, o pensamento descobre que o homem não é contemporâneo do que o faz ser – ou daquilo a partir do qual ele é; mas que está preso no interior de um poder que o dispersa, o afasta para longe de sua própria origem, e todavia lha promete numa iminência que será talvez sempre furtada." (p. 351)
Ou seja, escutar o canto das sereias é transformar-se num ser submetido à linguagem, é converter-se em ser falante, e portanto, encontrar-se sempre preso dentro de um poder que contém o segredo da origem e a promessa da morte.
Parece-me assim, que o vazio a que Foucault se refere, esse ser da linguagem, consiste num vazio fundamental: o sustentáculo, ou melhor, o não-sustentáculo de tudo. Vazio de objetivo, vazio de sentido; e no entanto, é nele que a vida do homem e suas crenças se apóiam.
Mas a linguagem não seria apenas o vazio. Seria também sua própria cobertura, sua própria dissimulação, a ficção da ficção. Ela própria fornece os elementos para a criação do sentido, da arte, dos deuses, das ficções da vida.
O poeta orfeico é aquele que desvendou esse segredo e, ao se apoderar do próprio ser desse vazio, vê e cria alegorias, deuses, farsas e comédias. Sabe que semelas, a vida seria quase insuportável.
Portanto, o poeta orfeico é aquele que aceita bem a morte de Deus, não se desespera, não enlouquece. Aceita que o mundo é uma fábula. E ri, entra no jogo, mas sem acreditar realmente em nada.
Foucault fala de um resgatar da densidade enigmática da linguagem quando afirma o retorno da linguagem na modernidade, isto é, o retorno da densidade que ela teria conhecido no Renascimento. Não me parece, no entanto, que esse vislumbramento seja um privilégio da modernidade ou de epistemes específicas. A própria existência desses dois mitos da antigüidade parece atestar isso.
No entanto, essa é outra questão que apenas lanço aqui, como aperitivo ou "convite sedutor" para possíveis incursões futuras.




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