"A inflexão
da realidade nos corpos de Janaina Tschäpe"
Daniela
Bousso
Janaina Tschäpe
nasceu em Munique, na Alemanha, em 1973. Já realizou uma série de exposições em
instituições da Europa, da Ásia, nos Estados Unidos e no Brasil. Produz uma
obra na qual explora toda a multiplicidade de meios de que dispomos na
contemporaneidade: segundo ela mesma, os desenhos são fragmentos do pensamento;
o vídeo nos traz o mundo das imagens em movimento, tempo e som; a fotografia,
que nos revela uma fração de tempo, é um convite para o espectador imaginar uma
estória além dessa fração; e a pintura, que recém-retorna à sua obra, é a
continuação desse trabalho.
A artista que,
de certa forma, incorpora a vida como matéria-prima em seu trabalho, a
possibilidade de transformar tudo em ficção parece ser a razão de criar. Seu
imaginário é feito de cenografias nas quais ela mesma se insere. Muitas vezes,
fotografa-se ou integra as performances que realiza e filma. Outras vezes,
convida as amigas para “brincar”: “Eu quero estender essa experiência aos
outros e convidá-los a brincar comigo. Quando éramos crianças, nós tínhamos
acesso direto ao universo da brincadeira. Eu ainda brinco de estar em todos os
lugares ao mesmo tempo”.
Essa idéia de
multiplicidade e desdobramento, presente no pensamento e na obra de Janaina,
explica o seu universo fluido e mole: como tão bem escreveu Saint Clair Cemin
(2003: 63-5) ela cria “seres que vivem entre a mata e o céu”. Em busca de um
constante “estar molhado”, há uma integração entre ela e os ambientes.
Celebrando a natureza, funde seres e coisas: mulheres, pássaros, ar, vento,
água, paisagens, castelos, tudo exala a auto-referência e a ambigüidade dos
sentidos. Os prolongamentos e fusões, em geral, referem-se ao corpo. Na água,
na paisagem, usando balões, preservativos inflados, asas, formas pneumáticas, o
corpo aquático e o corpo aéreo convivem com o corpo estendido sobre a terra.
O desejo de
fusão, de borrar limites e contornos, de ampliar a dimensão do corpóreo, já
estava presente no início das experiências artísticas de Janaina, quando ela
trabalhava com massa de modelagem, a “massinha”, com a qual concebeu a obra
Sala de espera. Nela, a artista se apresentou de costas para o espectador,
contemplando uma paisagem, e, com a massa de modelar, construiu um par de asas
que acoplou às suas costas. A paisagem idílica, a atmosfera melancólica e a
difusão da luminosidade que imprime à sua narrativa nos remetem à idéia do
trágico, própria das obras de concepção romântica. A linguagem dos sonhos, a
ligação entre o sagrado e o profano, a metáfora e o simbólico, o sublime e o
informe, os elementos que constroem a estética do Romantismo, são presenças
recorrentes na obra de Tschäpe.
A assemblage
entre asa e corpo já enunciava um desejo de inflexão da realidade em sua obra
e, diante da natureza, constitui uma totalidade orgânica e solitária, em que se
pode notar, com clareza, a presença da livre associação do pensamento na sua
ação artística, características estas que constituíram a base conceitual do
Surrealismo e do Dadaísmo. Janaina me revela, em recente depoimento, que o
filme Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dali, a tocou profundamente,
influenciando seu repertório de forma marcante. A primeira cena do filme — na
qual o olho de uma mulher é cortado com a lâmina de uma faca em close-up — e a
imagem das formigas saindo da mão do protagonista, levaram-na a questionar a
realidade e a forma das coisas: “Por que a parede e o chão não são emendados?”
As massinhas passaram a ser seu material de experiência por poderem juntar um
rosto com uma parede, anulando assim a identidade do rosto. Quebrar o cotidiano
e sua expansão a um só tempo, vivenciar uma outra pessoa, estar em dois lugares
simultaneamente, tudo indicia um “mundo surreal que faz as coisas terem uma outra
dimensão”, afirma a artista.
Se os
surrealistas utilizaram o recurso da fragmentação — apresentando cenas ou
imagens com braços amputados, órgãos arrancados do corpo humano que, por vezes,
constituíram uma espécie de imaginário da violência e do horror — o surreal em
Janaina ocorre de maneira diferenciada, muito mais próxima da idéia de uma
estética compartilhada, relacional mesmo; o humor beira a construção de um
universo doméstico: usar preservativos nas mãos e nos pés pode parecer uma doce
brincadeira, uma porta de entrada para um universo ao mesmo tempo lúdico e
alusivo ao mundo das próteses, a um corpo protético propriamente dito. Ou como
na experiência das Camaleoas, quando trabalhou com quatro mulheres faveladas
que, com materiais do cotidiano, como panelas, se transformavam em executiva,
robô, sol e raiz. Ou, ainda, na obra Lacrima Corpus, vídeo no qual uma mulher
dança com bexigas acopladas nas costas até a exaustão, quando então seu corpo
cai no chão. Nessa obra, o corpo é condutor de imaginação, fonte de brincadeira
com Jenny atuando, sua amiga desde os 13 anos. Não há um roteiro prévio. A
incorporação do acaso é que define a filmagem enquanto o trabalho (brincadeira)
está sendo realizado.
Mas muito se
engana quem pensa que o trabalho de Janaina é apenas uma brincadeira. Na
verdade, ele emana também de uma certa tensão entre índole, natureza,
vulnerabilidade e formação, processo cognitivo e formalismo. Tendo se graduado
na Alemanha com discípulos do grupo Fluxus e de Joseph Beuys, logo no início de
seu trabalho se viu enredada em um embate típico dos anos 1980: seu desejo de
pintar foi imediatamente tolhido por um ambiente que exigia do aluno um forte
desenvolvimento conceitual. Não havia espaço para o emocional. Em relação à
pintura, seus mestres diziam: “Isso é coisa de mulher”. Dessa forma, Janaina
concluiu a universidade com uma tese que era um “poema de amor”.
Foi por esta
razão, também, que a sua pintura se tornou objeto que, por sua vez, se
converteu em escultura e, assim, após voltar ao Brasil e residindo em Salvador,
começou a desenvolver trabalhos sobre o tema do corpo, sua fusão e
desintegração. A incorporação de materiais orgânicos — como tripas e gordura —
mudavam o caráter do seu trabalho, conferindo-lhe maior organicidade, mas o clima
úmido de Salvador transformou tudo em mofo. Janaina perdeu os trabalhos e decidiu não
ter mais ateliê, nem materiais, e começou a trabalhar com o meio fotográfico.
Ela possuía duas malas: uma continha esculturas em látex — que, por serem
infláveis, podiam ser transportadas com facilidade — e a outra, objetos
pessoais. Assim, Janaina trocou a casa e o ateliê por passagens. Agora, a
artista era o estúdio.
Apropriando-se
da fotografia como meio, Janaina transmutou seu trabalho em performance, sua
cabeça em ateliê e ela mesma em seu material, convertendo-se em personagem. Das
primeiras máscaras, passou para a série das Mortinhas. Ela se fotografava com
uma 35mm automática que disparava o botão enquanto posava seu corpo estendido
no chão. Novamente, percebemos o prolongamento do corpo no solo: - a artista de
costas para o espectador, como que querendo se mesclar ao chão de uma natureza
ou paisagem, seja ela uma interminável escadaria, sala de estar decorada em
estilo clássico, varanda neoclássica, mansão, ponte sobre o mar, rio ou pedras.
São 100 pequenas mortes nas quais o corpo se encontra em meio à imensidão e à
infinitude das paisagens e, ainda assim, permanece em evidência. Ele
quebra o silêncio da paisagem ou do lugar escolhido por suas andanças pelo
mundo e provoca um ruído surdo que ecoa sob os nossos olhares, em uma constante
referência à pintura romântica; Turner, Constable, Friedrich ressurgem da nossa
memória inconsciente.
Nas séries
After the rain, The Moat and the moon e Água viva, aparecem seres tanto na
terra quanto na água, com seus corpos prolongados por balões, preservativos e
glóbulos. As formas embriônicas parecem querer promover a extensão biológica do
corpo para criar um mundo imaginário que dissemina a idéia de um corpo informe
e mutante. A hibridização corpo-escultura, orientada na direção do fictício,
faz com que os seres de Janaina se desloquem com uma tal soberania pelos
espaços e ambientes que é como se eles já lhes pertencessem.
Tentaculares e
“endomingados”, eles ostentam trajes que nem mesmo sucumbem às cicatrizes e
invólucros à mostra, nas costuras e suturas aparentes das “peles” que os
envolvem. Mesmo com suas supostas “anomalias”, estes seres se apropriam dos
lugares e das situações com despojamento, e há uma visível normalidade entre
eles e seus contextos. Por meio dos disfarces ou travestimentos, Tschäpe abala
a noção de identidade.
Aludindo à
composição química do mar como análoga à do sangue e operando em um campo no
qual investiga as possibilidades de uma metáfora da evolução, a artista, no
vídeo Blood, Sea, aborda uma simbologia que nos reporta aos questionamentos
sobre a origem do mundo, da vida propriamente dita. A crítica de artes visuais
Lisette Lagnado, em texto sobre essa obra, chama a atenção para a vasta
simbologia a que se presta a água: “o inconsciente e o erótico, ambos movediços
e incapturáveis...”, e prossegue, refletindo sobre o sangue:
...por ser um
fluído interno, um derramamento incontrolado desse líquido viscoso conspira
para o perigo. Falta de sangue, perda dos sentidos. Artistas que usam o corpo
como suporte costumam ser atraídos por rituais, mutilações, levando a prática
estética ao limite do tolerável. Aconteceu no pós- guerra. Mas os seres
moluscos que habitam as imagens de Janaina têm sangue branco, podendo transitar
sem sofrimento entre a exterioridade e a interioridade. É a ficção que nos
conforta dos banhos de sangue, leis do homem. (Lagnado: 2005)
Não é somente pela água que o erotismo transparece na obra de Janaina: ele também se manifesta nas plantas, frutas, ovários e bolhas de suas aquarelas, como na série Botânica, na qual cada planta evoca uma parte do sistema reprodutivo humano. Tudo tem vida e é fálico; a alusão à sexualidade é realizada por meio do belo e de um humor sinistro. Não são poucas as referências à obra de Tschäpe como feminista e performática — resgatada das performances dos anos 60 e 70 — ou as comparações com artistas como Matthew Barney, Bellmer, Ligia Clark e à Yemanjá, rainha do mar na cultura afro-brasileira, por causa do seu nome — Janaina — e do seu universo aquático, sobretudo na série Água-viva. Então, vejamos como a artista responde às colocações referentes ao feminino e ao feminista:
Não é somente pela água que o erotismo transparece na obra de Janaina: ele também se manifesta nas plantas, frutas, ovários e bolhas de suas aquarelas, como na série Botânica, na qual cada planta evoca uma parte do sistema reprodutivo humano. Tudo tem vida e é fálico; a alusão à sexualidade é realizada por meio do belo e de um humor sinistro. Não são poucas as referências à obra de Tschäpe como feminista e performática — resgatada das performances dos anos 60 e 70 — ou as comparações com artistas como Matthew Barney, Bellmer, Ligia Clark e à Yemanjá, rainha do mar na cultura afro-brasileira, por causa do seu nome — Janaina — e do seu universo aquático, sobretudo na série Água-viva. Então, vejamos como a artista responde às colocações referentes ao feminino e ao feminista:
Trabalho antes
de tudo como ser humano revelando minhas experiências e visões de vida (...) sou
uma mulher, e lógico que esse é o meu ponto de partida. Eu não vejo a arte por
meio de questões de gênero ou pelos seus aspectos culturais, nem por um ponto
de vista que possa ser entendido como sendo de um macho ou de uma fêmea.
(Catálogo Janaina Tschäpe: 2003)
Da mesma forma,
a relação entre a obra de Janaina e os bonecos do surrealista Bellmer soa um
pouco forçada e óbvia. Se, de um lado, a obra de Bellmer tem a erotização do
corpo como idéia central, ela existe em função de premissas básicas do Surrealismo,
refletindo um padrão sexual básico. Seus seres também são híbridos, mas o
hibridismo de Bellmer se limita ao aspecto perverso da inversão dos órgãos de
seus bonecos. Para Janaina, o híbrido não caracteriza a perversão, nem é
assustador, ele está presente para afirmar a idéia de ficção. Se os bonecos de
Bellmer suscitam a idéia aterradora dos pesadelos, para Janaina o onírico serve
para nos transportar para a virtualidade dos contos.
Já as analogias
com as obras de Lygia Clark e Matthew Barney ampliam o sentido de sua obra. Com
Barney, Janaina constitui um acervo de arquétipos contemporâneos que emana das
suas ligações com o Surrealismo, da presença do simbolismo, da pletora de
personagens, do hibridismo dos seres; o universo e o repertório comuns, voltados
às perspectivas de extensão biológica do corpo, traduzem o humor sinistro e a
ironia. Em relação à Lígia Clark, é como se Tschäpe desse continuidade pessoal
às experiências de sensibilização corporal e à estética relacional, iniciadas
por Clark, nos prolongamentos do corpo, por meio de sacos plásticos cheios de
água, nas “brincadeiras”, na projeção do desejo na obra, no desenvolvimento de
uma constante tatilidade. Quanto à relação com as manifestações da arte do
corpo e da performance nos anos 60 e 70, cabe esclarecer que, naquele momento,
o foco no corpo vivo do artista é o que contava. Hoje, ele se deslocou para as
instalações encenadas, o que me parece ser mais precisamente o caso da produção
de Janaina.
Para a artista,
“o desejo é o lugar de transformação do nosso ser, mesmo que seja só por um
segundo, para abrir um universo que unifica o passado e o futuro, quando
podemos criar em uma zona intermediária (timeless), quando podemos ser tudo o
que quisermos...” (Tschäpe: 2006)
Com essa
afirmação de Janaina, permito-me sugerir que o desejo, em última instância,
está alocado no corpo. O corpo, portanto, por ser o locus do desejo, produtor
de sentidos, torna-se potência “em si”: um corpo vibrátil, portanto político,
sem necessariamente ser violento, o qual não se presta à subjeção ou a ser
domesticado, escapando aos mecanismos de dominação e controle. Nesse caso, cabe
ainda uma questão: as alusões a um universo exótico por excelência – tais como
possíveis referências em relação à cultura afro-brasileira ou latino-americana
–, como, por exemplo, as analogias com Iemanjá, o “primitivo”, e seu próprio
nome, Janaina (rainha do mar na cultura Candomblé), não resultam, talvez, em
uma visão eurocêntrica da arte brasileira?
Com suas ações
performáticas que prescindem de audiência e exploram a relação entre corpo e
objetos, ambiente e corpo, Janaina se torna simultaneamente atriz e diretora de
cena, para depois também se transformar em espectador. Com
seus corpos, a artista promove a desorganização sistêmica dos órgãos, como a
querer deslocar diversas ordens: a do organismo, a religiosa e a do corpo
supostamente inviolável. Mesmo na ausência de obscenidade ou de agressão
direta, como ocorre na obra de Cindy Sherman e no imaginário de Georges
Bataille, a violação é exposta por meio do aspecto infantil e lúdico dos seus
personagens, que propagam a desestabilização de uma ordem apriorística. Assim,
esses corpos já não são mais referentes e, sim, significantes: signos da
contra-ordem e da transversalidade devido à sua ação complexa e subversiva.
Pela evocação do riso e da ilusão, o corpo, em Janaina Tschäpe,
é, por excelência, o lugar de inflexão da realidade.
Adorei! Quero saber mais, quero usar como referência! Não conhecia muito o trabalho desta artista, e através dessa leitura me identifiquei em vários aspectos!!! Gostei da utilização de "Instalações Encenadas"...
ResponderExcluirJu, tenho um catálogo dela muito legal, de onde me apropriei do texo da Daniela Bousso. Posso te emprestar.
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