“O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.”
in: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 197-221
(Escrito em 1936 sob o título Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows).
1
Por mais
familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em
sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.
Descrever um Leskov* como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e
sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma
certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se
destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo
de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância
apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a
exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que
a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente. Quando [fim da p. 197] se pede num grupo que
alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos
privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências.
Uma das
causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo
indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta
olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e
que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do
mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a
guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final
da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha
não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se
difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em
comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de
anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas
que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência
econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a
experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num
bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada
permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças
de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.
2
A
experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.
Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A
figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses
dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com
isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com
prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que
conhece suas histórias e tradições- [fim da p. 198]. Se quisermos concretizar
esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que
um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro
comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo
suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer
dos séculos, suas características próprias. Assim, entre os autores alemães
modernos, Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família, e Sielsfield e
Gerstäcker à segunda. No entanto essas duas famílias, como já se disse,
constituem apenas tipos fundamentais. A extensão real do reino narrativo, em
todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendido se levarmos em conta a
interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval
contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os
aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha
sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro.
Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar,
foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o
saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do
passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.
3
Leskov
está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal.
Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso. Mas
sua hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína. Como suas
relações com o funcionalismo leigo não eram melhores, os cargos oficiais que
exerceu não foram de longa duração. O emprego de agente russo de uma firma
inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os
empregos possíveis, o mais útil para sua produção literária. A serviço dessa
firma viajou pela Rússia, e essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência
do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas. Desse modo teve
ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou traços em suas
narrativas. Nos contos lendários russos, Leskov encontrou aliados em seu
combate contra a burocracia ortodoxa- [fim da p. 199]. Escreveu uma série de
contos desse gênero, cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em
geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior
naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se
interessasse pelo maravilhoso, em questões de piedade preferia uma atitude
solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender
demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões temporais correspondia a
essa atitude. É coerente com tal comportamento que ele tenha começado tarde a
escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro
texto impresso se intitulava: "Por que são os livros caros em Kiev?".
Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária,
sobre o alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores
desempregados.
4
O senso
prático é uma das características de muitos narradores natos. Mais tipicamente
que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que dá conselhos de
agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da
iluminação a gás, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas
informações científicas em seu Schatzkästlein
(Caixa de tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa.
Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão
prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se "dar conselhos"
parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem
aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão
sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão,
é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é
receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho
tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de
narrar está definhando porque [fim da p. 200] a sabedoria - o lado épico da
verdade - está em
extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais
tolo que ver nele um "sintoma de decadência" ou uma característica
"moderna". Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a
narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que
está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução
secular das forças produtivas.
5
O primeiro
indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do
romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da
epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A
difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição
oral, patrimônio da poesia épica tem uma natureza fundamentalmente distinta da
que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas
de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da
tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O
narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado,
que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes
e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na
descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na
riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda
perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote,
mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais
nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm
a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou
ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento - talvez o melhor exemplo
seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister)
-, essas tentativas resultaram sempre na [fim da p. 201] transformação da
própria forma romanesca. O romance de formação (Bildungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da
estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida
de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam
tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No
romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação.
6
Devemos
imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que
presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas
formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais
lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de
centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos
favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa
começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de
múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por
ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual
a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes -
destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas
origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce
essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais
ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma
de comunicação é a informação.
Villemessant,
o fundador do Figaro, caracterizou a
essência da informação com uma fórmula famosa. "Para meus leitores", costumava
dizer, "o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma
revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem
de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos
próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas,
ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era
[fim da p. 202] válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a
informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa
ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata
que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente
ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é
incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a
difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.
Cada manhã
recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias
surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de
explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da
narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa
está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como
A fraude, ou A águia branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com
a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor.
Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio
narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.
7
Leskov
freqüentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No
capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias
encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido
ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu
ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal
dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua
filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar
água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit
ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu
seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas,
quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos,
golpeou a cabeça- [fim da p. 203] com os
punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.
Essa
história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor
no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se
inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente
é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito
tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei
egípcio e pergunta: porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor?
Sua resposta é que ele "já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a
mais bastaria para derrubar as comportas". É a explicação de Montaigne.
Mas poderíamos também dizer: "O destino da família real não afeta o rei,
porque é o seu próprio destino". Ou: "muitas coisas que não nos
afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um
ator". Ou: "as grandes dores são contidas, e só irrompem quando
ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão".
Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história
do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e
reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de
anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam
até hoje suas forças germinativas.
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Nada
facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as
salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador
renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na
memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria
experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um
dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um
estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais
alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O
tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro
nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao
tédio [fim da p. 204] - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção
no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos
ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se
perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém
mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de
si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do
trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire
espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado
o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de
ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho
manual.
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A
narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no
mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de
comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da
coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a
marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam
de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram
informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir
essa história a uma experiência autobiográfica. Leskov começa A fraude com uma
descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os
episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou
conhecimento com a heroína de A propósito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma
reunião num círculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens
interessantes. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas
coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem
as relata.
O próprio
Leskov considerava essa arte artesanal - a narrativa - como um ofício manual.
"A literatura", diz ele em uma carta, "não é para mim uma arte,
mas um trabalho [fim da p. 205] manual." Não admira que ele tenha se
sentido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. Tolstoi, que
tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do
talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro "a apontar
a insuficiência do progresso econômico... É estranho que Dostoievski seja tão
lido... Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov. Ele é um
escritor fiel à verdade". No malicioso e petulante A pulga de aço,
intermediário entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o
trabalho artesanal. Sua obra-prima, a pulga de aço, chega aos olhos de Pedro, o
Grande e o convence de que os russos não precisam envergonhar-se dos ingleses.
Talvez
ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo
de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se
encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros,
criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de
uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas
só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente
o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras,
marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e
claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma
quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma
indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo
não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado."
Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos
dias ao nascimento da short story,
que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de
camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo
qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas
constituídas pelas narrações sucessivas- [fim da p. 206].
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Valéry
conclui suas reflexões com as seguintes palavras: "dir-se-ia que o
enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com uma aversão
cada vez maior ao trabalho prolongado". A idéia da eternidade sempre teve
na morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando, temos que
concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação
é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de
narrar se extinguia.
No
decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a idéia da morte vem
perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação.
Esse processo se acelera em suas últimas etapas. Durante o século XIX, a
sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas
e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu
objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Morrer
era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente
exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se
transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas
escancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos.
Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido
alguém. (A Idade Média conhecia a contrapartida espacial daquele sentimento
temporal expresso num relógio solar de Ibiza: ultima multis). Hoje, os
burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua
hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais. Ora, é no
momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência
vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela
primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante
desfilam inúmeras imagens - visões de si mesmo, nas quais ele se havia
encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em
seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela
autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, [fim da p. 207] para os
vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.
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A morte é
a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua
autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural. Esse
fenômeno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narrativas do
incomparável Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkästlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de tesouros do
amigo renano das famílias) e chama-se Unverhofftes
Wiedersehen (Reencontro inesperado). A história começa com o noivado de um
jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun. Na véspera do casamento, o
rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterrânea. Sua noiva se
mantém fiel além da morte e vive o suficiente para reconhecer um dia, já
extremamente velha, o cadáver do noivo, encontrado em sua galeria perdida e
preservado da decomposição pelo vitríolo ferroso. A anciã morre pouco depois.
Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o
início da história, e sua solução foi a seguinte: "Entrementes, a cidade
de Lisboa foi destruída por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e
o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesuítas foi dissolvida, e a
Polônia foi retalhada, e a imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi
executado, a América se tornou independente, e a potência combinada da França e
da Espanha não pôde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein
na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei
Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as
grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também. Napoleão
conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses
semeavam e ceifavam. O moleiro moeu, e os ferreiros forjaram, e os mineiros
cavaram à procura de filões metálicos, em suas oficinas subterrâneas. Mas,
quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...". Jamais outro narrador
conseguiu inscrever tão profundamente sua história na história natural como
Hebel com essa cronologia. Leia-se com [fim da p. 208] atenção: a morte
reaparece nela tão regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos
que desfilam ao meio-dia nos relógios das catedrais.
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Cada vez
que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação
entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a
historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação
a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as
formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja
entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e
incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da
crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se
estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da
história. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente o da
crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre quem escreve a história, o
historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador é obrigado a explicar de
uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente
contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente
o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos,
os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua
historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus
desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação
verificável. Ela é substituída pela exegese, que não se preocupa com o
encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no
fluxo insondável das coisas.
Não
importa se esse fluxo se inscreve na história sagrada ou se tem caráter
natural. No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer
secularizado. Entre eles, Leskov é aquele cuja obra demonstra mais claramente
esse fenômeno. Tanto o cronista, vinculado à história sagrada, como o narrador,
vinculado à história profana, participam igualmente da natureza dessa obra a
tal ponto que, em muitas [fim da p. 209] de suas narrativas, é difícil decidir
se o fundo sobre o qual elas se destacam é a trama dourada de uma concepção
religiosa da história ou a trama colorida de uma concepção profana. Pense-se,
por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor nos velhos tempos em
que "as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes
se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário dos dias de hoje, em
que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à sorte dos seres
humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, lhes dirige a palavra ou
lhes obedece. Os planetas recém-descobertos não desempenham mais nenhum papel
no horóscopo, e existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com
seu peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não nos
anunciam nada e não têm nenhuma utilidade para nós. O tempo já passou em que
elas conversavam com os homens".
Como se
vê, é difícil caracterizar inequivocamente o curso das coisas, como Leskov o
ilustra nessa narrativa. É determinado pela história sagrada ou pela história
natural? Só se sabe que, enquanto tal, o curso das coisas escapa a qualquer
categoria verdadeiramente histórica. Já se foi a época, diz Leskov, em que o
homem podia sentir-se em harmonia com a natureza: Schiller chamava essa época o
tempo da literatura ingênua. O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e
seu olhar não se desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das
criaturas, na qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo, ou como
retardatária miserável.
13
Não se
percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o
narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o
ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A
memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória abrangente
permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e
resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder -
da morte. Não admira que para um personagem de Leskov, um simples homem do
povo, o czar, o centro do mundo e em [fim da p. 210] torno do qual gravita toda
a história, disponha de uma memória excepcional. "Nosso imperador e toda a
sua família têm, com efeito, uma surpreendente memória".
Mnemosyne, a deusa
da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica. Esse nome chama a
atenção para uma decisiva guinada histórica. Se o registro escrito do que foi
transmitido pela reminiscência - a historiografia - representa uma zona de
indiferenciação criadora com relação às várias formas épicas (como a grande
prosa representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às diversas
formas métricas), sua forma mais antiga, a epopéia propriamente dita, contém em
si, por uma espécie de indiferenciação, a narrativa e o romance. Quando no
decorrer dos séculos o romance começou a emergir do seio da epopéia, ficou
evidente que nele a musa épica - a reminiscência - aparecia sob outra forma que
na narrativa.
A
reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração. Ela
corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades
da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo
narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem
entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros
narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade,
que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando.
Tal é a memória épica e a musa da narração. Mas a esta musa deve se opor outra,
a musa do romance que habita a epopéia, ainda indiferenciada da musa da
narrativa. Porém ela já pode ser pressentida na poesia épica. Assim, por
exemplo, nas invocações solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que
se prenuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista, em
contraste com a breve memória do narrador. A primeira é consagrada a um herói,
uma peregrinação, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras
palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da
narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua
origem comum na reminiscência. [fim da p. 211]
14
Como disse
Pascal, ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si. Em todo
caso, ele deixa reminiscência, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. O
romancista recebe a sucessão quase sempre com uma profunda melancolia. Pois,
assim como se diz num romance de Arnold Bennet que uma pessoa que acabara de
morrer "não tinha de fato vivido", o mesmo costuma acontecer com as
somas que o romancista recebe de herança. Georg Lukács viu com grande lucidez
esse fenômeno. Para ele, o romance é "a forma do desenraizamento
transcendental". Ao mesmo tempo, o romance, segundo Lukács, é a única
forma que inclui o tempo entre os seus princípios constitutivos. "O
tempo", diz a Teoria do romance, "só pode ser constitutivo quando
cessa a ligação com a pátria transcendental... Somente o romance... separa o
sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal; podemos quase dizer
que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do
tempo... Desse combate,... emergem as experiências temporais autenticamente
épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no romance... ocorre uma
reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma... O sujeito só
pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe
a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na
reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão
divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto,
inexprimível".
Com
efeito, "o sentido da vida" é o centro em torno do qual se movimenta
o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade
do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, "o sentido da
vida", e no outro, "a moral da história" - essas duas palavras
de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender
o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. Se o modelo
mais antigo do romance é Dom Quixote, o mais recente talvez seja A educação
sentimental. As últimas palavras deste romance mostram como o sentido do
período burguês no início do seu declínio se depositou como um sedimento no
copo da vida. Frédéric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua
[fim da p. 212] mocidade e lembram um pequeno episódio: uma vez, entraram no
bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e limitaram-se a oferecer à
dona da casa um ramo de flores, que tinham colhido no jardim. "Falava-se
ainda dessa história três anos depois. Eles a contaram prolixamente, um
completando as lembranças do outro, e quando terminaram Frédéric exclamou: -
Foi o que nos aconteceu de melhor! - Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de
melhor! disse Deslauriers." Com essa descoberta, o romance chega a seu
fim, e este é mais rigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito, numa
narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - é plenamente justificada. O
romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que,
escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a
refletir sobre o sentido de uma vida.
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Quem
escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha
dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que
qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo
em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se
apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua,
devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o
fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha
muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama.
O
interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto?
"Um homem que morre com trinta e cinco anos", disse certa vez Moritz
Heimann, "é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e
cinco anos." Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana
dimensão do tempo. A verdade contida na frase é a seguinte: um homem que morre
aos trinta e cinco anos aparecerá sempre, na rememoração, em cada momento de
sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras:
a frase, que não tem nenhum sentido com relação à [fim da p. 213] vida real,
torna-se incontestável com relação à vida lembrada. Impossível descrever melhor
a essência dos personagens do romance. A frase diz que o "sentido" da
sua vida somente se revela a partir de sua morte. Porém o leitor do romance
procura realmente homens nos quais possa ler "o sentido da vida". Ele
precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo ou outro, de que
participará de sua morte. Se necessário, a morte no sentido figurado: o fim do
romance. Mas de preferência a morte verdadeira. Como esses personagens anunciam
que a morte já está à sua espera, uma morte determinada, num lugar determinado?
É dessa questão que se alimenta o interesse absorvente do leitor.
Em
conseqüência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um
destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome,
pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que
seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte
descrita no livro.
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Segundo
Gorki, "Leskov é" o escritor... mais profundamente enraizado no povo,
e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras". O grande
narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.
Contudo, assim como essas camadas abrangem o estrato camponês, marítimo e
urbano, nos múltiplos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico,
assim também se estratificam de múltiplas maneiras os conceitos em que o acervo
de experiências dessas camadas se manifesta para nós. (Para não falar da
contribuição nada desprezível dos comerciantes ao desenvolvimento da arte
narrativa, não tanto no sentido de aumentarem seu conteúdo didático, mas no de
refinarem as astúcias destinadas a prender a atenção dos ouvintes. Os
comerciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mil e uma
noites.) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa
desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos
quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser interpretado
numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar-se espontaneamente às categorias
pedagógicas do Iluminismo, [fim da p. 214] surge em Poe como tradição hermética
e encontra um último asilo, em Kipling, no circulo dos marinheiros e soldados
coloniais britânicos. Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com
que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa
escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens -
é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo
choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem
um impedimento.
"E se
não morreram, vivem até hoje", diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o
primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e
sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e
continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom
conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de
emergência. Era a emergência provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela
as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo
mítico. O personagem do "tolo" nos mostra como a humanidade se fez de
"tola" para proteger-se do mito; o personagem do irmão caçula
mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da
pré-história mítica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter
medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem
"inteligente" mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão
simples quanto às feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma
criança mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto
de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às
crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com
astúcia e arrogância. (Assim, o conto de fadas dialetiza a coragem (Mut) desdobrando-a em dois pólos: de um
lado Untermut, isto é, astúcia, e de
outro Übermut, isto é, arrogância). O
feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma
entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto
só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; para a
criança, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma
sensação de felicidade. [fim da p. 215]
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Poucos
narradores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas
como Leskov. Essas tendências foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa
grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulação de Orígenes, rejeitada pela
Igreja de Roma, sobre a apocatastasis,
a admissão de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel significativo.
Leskov foi muito influenciado por Orígenes. Tinha a intenção de traduzir sua
obra Dos primeiros princípios. No espírito das crenças populares russas,
interpretou a ressurreição menos como uma transfiguração que como um
desencantamento, num sentido semelhante ao do conto de fada. Essa interpretação
de Orígenes é o fundamento da narrativa O peregrino encantado. Essa história,
como tantas outras de Leskov, é um híbrido de contos de fadas e lenda,
semelhante ao híbrido de contos de fadas e saga, descrito por Ernst Bloch numa
passagem em que retoma à sua maneira nossa distinção entre mito e conto de fadas.
Segundo Bloch, "nessa mescla de conto de fadas e saga o elemento mítico é
figurado, no sentido de que age de forma estática e cativante, mas nunca fora
do homem. Míticos, nesse sentido, são certos personagens de saga, de tipo
taoísta, sobretudo os muito arcaicos, como o casal Filemon e Baucis: salvos,
como nos contos de fada, embora em repouso, como na natureza. Existe certamente
uma relação desse tipo no taoísmo muito menos pronunciado de Gotthelf; ele
priva ocasionalmente a saga do encantamento local, salva a luz da vida, a luz
própria à vida humana, que arde serenamente, por fora e por dentro".
"Salvos, como nos contos de fadas", são os seres à frente do cortejo
humano de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, o cabeleireiro, o domador de
ursos, a sentinela prestimosa - todos eles, encarnando a sabedoria, a bondade e
o consolo do mundo, circundam o narrador. É incontestável que são todos
derivações da imago materna. Segundo a descrição de Leskov, "ela era tão
bondosa que não podia fazer mal a ninguém, nem mesmo aos animais. Não comia nem
peixe nem carne, tal sua compaixão por todas as criaturas vivas. De vez em
quando, meu pai costumava censurá-la... Mas ela respondia: eu mesma criei esses
animaizinhos, eles são como meus filhos. Não posso comer meus próprios filhos!
Mesmo na casa dos vizinhos ela se abstinha de carne- [fim da p. 216], dizendo:
eu vi esses animais vivos; são meus conhecidos. Não posso comer meus
conhecidos”.
O justo é
o porta-voz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnação. Ele tem em
Leskov traços maternais, que às vezes atingem o plano mítico (pondo em perigo,
assim, a pureza da sua condição de conto de fadas). Característico, nesse
sentido, é o personagem central da narrativa Kotin, o provedor e Platônida.
Esse personagem, um camponês chamado Pisonski, é hermafrodita. Durante doze
anos, a mãe o educou como menina. Seu lado masculino e o feminino amadurecem
simultaneamente e seu hermafroditismo transforma-se em "símbolo do
Homem-Deus".
Leskov vê
nesse símbolo o ponto mais alto da criatura e ao mesmo tempo uma ponte entre o
mundo terreno e o supra-terreno. Porque essas poderosas figuras masculinas,
telúricas e maternais, sempre retomadas pela imaginação de Leskov, foram
arrancadas, no apogeu de sua força, à escravidão do instinto sexual. Mas nem
por isso encarnam um ideal ascético; a castidade desses justos tem um caráter
tão pouco individual que ela se transforma na antítese elementar da luxúria
desenfreada, representada na Lady Macbeth de Mzensk. Se a distância entre
Pavlin e essa mulher de comerciante representa a amplitude do mundo das
criaturas, na hierarquia dos seus personagens Leskov sondou também a
profundidade desse mundo.
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A
hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figura do justo, desce por
múltiplos estratos até os abismos do inanimado. Convém ter em mente, a esse
respeito, uma circunstância especial. Para Leskov, esse mundo se exprime menos
através da voz humana que através do que ele chama, num dos seus contos mais
significativos, "A voz da natureza". Seu personagem central é um
pequeno funcionário, Filip Filipovitch, que usa todos os meios a seu dispor
para hospedar em sua casa um marechal-de-campo, que passa por sua cidade. Seu
desejo é atendido. O hóspede, a princípio admirado com a insistência do funcionário,
com o tempo julga reconhecer nele alguém que havia encontrado antes. Quem? Não
consegue [fim da p. 217] lembrar-se. O mais estranho é que o dono da casa nada
faz para revelar sua identidade. Em vez disso, ele consola seu ilustre hóspede,
dia após dia, dizendo que "a voz da natureza" não deixará de se fazer
ouvir um dia. As coisas continuam assim, até que o hóspede, no momento de
continuar sua viagem, dá ao funcionário a permissão, por este solicitada, de
fazer ouvir "a voz da natureza". A mulher do anfitrião se afasta.
"Ela voltou com uma corneta de caça, de cobre polido, e entregou-a a seu
marido. Ele pegou a corneta, colocou-a na boca e sofreu uma verdadeira
metamorfose. Mal enchera a boca, produzindo um som forte como um trovão, o
marechal-de-campo gritou: - Pára! Já sei, irmão, agora te reconheço! És o
músico do regimento de caçadores, que como recompensa por sua honestidade
enviei para vigiar um intendente corrupto. - É verdade, Excelência, respondeu o
dono da casa. Eu não queria recordar esse fato a Vossa Excelência, e sim deixar
que a voz da natureza falasse." A profundidade dessa história, escondida
atrás de sua estupidez aparente, dá uma idéia do extraordinário humor de
Leskov.
Esse humor
reaparece na mesma história de modo ainda mais discreto. Sabemos que o pequeno
funcionário fora enviado "como recompensa por sua honestidade... para
vigiar um intendente corrupto". Essas palavras estão no final, na cena do
reconhecimento. Porém no começo da história lemos o seguinte sobre o dono da casa:
"os habitantes do lugar conheciam o homem e sabiam que não tinha uma
posição de destaque, pois não era nem alto funcionário do Estado nem militar,
mas apenas um pequeno fiscal no modesto serviço de intendência, onde,
juntamente com os ratos, roía os biscoitos e as botas do Estado, chegando com o
tempo a roer para si uma bela casinha de madeira". Manifesta-se assim,
como se vê a simpatia tradicional do narrador pelos patifes e malandros. Toda a
literatura burlesca partilha essa simpatia, que se encontra mesmo nas culminâncias
da arte: os companheiros mais fiéis de Hebel são o Zumdelfrieder, o
Zundelheiner e Dieter o ruivo. No entanto, também para Hebel o justo desempenha
o papel principal no theatrum mundi.
Mas, como ninguém está à altura desse papel, ele passa de uns para outros. Ora
é o vagabundo, ora o judeu avarento, ora o imbecil, que entram em cena para
representar esse papel. A peça varia segundo as circunstâncias, é uma
improvisação moral. [fim da p. 218] Hebel é um casuísta. Ele não se solidariza,
por nenhum preço, com nenhum princípio, mas não rejeita nenhum, porque cada um
deles pode se tornar um instrumento dos justos. Compare-se essa atitude com a
de Leskov. "Tenho consciência", escreve ele em A propósito da Sonata
de Kreuzer, "de que minhas idéias se baseiam muito mais numa concepção
prática da vida do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada, mas já me
habituei a pensar assim”. De resto, as catástrofes morais que ocorrem no
universo de Leskov se relacionam com os incidentes morais que ocorrem no universo
de Hebel como a vasta e silenciosa torrente do Volga se relaciona com o riacho
tagarela e saltitante que faz girar o moinho. Entre as narrativas históricas de
Leskov existem várias nas quais as paixões são tão destruidoras como a ira de
Aquiles ou o ódio de Hagen. É surpreendente verificar como o mundo pode ser
sombrio para esse autor e com que majestade o mal pode empunhar o seu cetro.
Obviamente, Leskov conheceu estados de espírito em que estava muito próximos de
uma ética antinomística, e esse é talvez um dos seus poucos pontos de contato
com Dostoievski. As naturezas elementares dos seus Contos dos velhos tempos vão
até o fim em sua paixão implacável. Mas esse fim é justamente o ponto em que,
para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade.
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Quanto
mais baixo Leskov desce na hierarquia das criaturas, mais sua concepção das
coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa
característica é própria da natureza do narrador. Contudo poucos ousaram mergulhar
nas profundezas da natureza inanimada, e não há muitas obras, na literatura
narrativa recente, nas quais a voz do narrador anônimo, anterior a qualquer
escrita, ressoe de modo tão audível como na história de Leskov, A alexandrita.
Trata-se de uma pedra semipreciosa, o piropo. A pedra é o estrato mais ínfimo
da criatura. Mas para o narrador ela está imediatamente ligada ao estrato mais
alto. Ele consegue vislumbrar nessa pedra semipreciosa, o piropo, uma profecia
natural do mundo mineral e inanimado dirigida ao mundo histórico, na qual ele
próprio vive. Esse mundo é o de Alexandre II[fim da p. 219]. O narrador - ou
antes, o homem a quem ele transmite o seu saber - é um lapidador chamado
Wenzel, que levou sua arte à mais alta perfeição. Podemos aproximá-lo dos
ourives de Tula e dizer que, segundo Leskov, o artífice perfeito tem acesso aos
arcanos mais secretos do mundo criado. Ele é a encarnação do homem piedoso.
Leskov diz o seguinte desse lapidador: "Ele segurou de repente a minha
mão, na qual estava o anel com a alexandrita, que como se sabe emite um brilho
rubro quando exposta a uma iluminação artificial, e gritou: - Olhe, ei-la aqui,
a pedra russa, profética... Ó siberiana astuta! Ela sempre foi verde como a
esperança e somente à noite assume uma cor de sangue. Ela sempre foi assim,
desde a origem do mundo, mas escondeu-se por muito tempo e ficou enterrada na
terra, e só consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre,
quando um grande feiticeiro visitou a Sibéria para achá-la, a pedra, um
mágico... - Que tolices o Sr. está dizendo! interrompi-o. Não foi nenhum mágico
que achou essa pedra, foi um sábio chamado Nordenskjöld! - Um mágico! digo-lhe
eu, um mágico, gritou Wenzel em voz alta. Veja, que pedra! Ela.contém manhãs
verdes e noites sangrentas... Esse é o destino, o destino do nobre czar
Alexandre! Assim dizendo, o velho Wenzel voltou-se para a parede, apoiou-se nos
cotovelos... e começou a soluçar".
Para
esclarecer o significado dessa importante narrativa, não há melhor comentário
que o trecho seguinte de Valéry, escrito num contexto completamente diferente.
"A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os
objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e claridades formam sistemas e
problemas particulares que não dependem de nenhuma ciência, que não aludem a
nenhuma prática, mas que recebem toda sua existência e todo o seu valor de
certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão de uma pessoa nascida
para surpreender tais afinidades em si mesmo, e para as produzir”.
A alma, o
olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem
uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no
trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a
narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de
modo algum o produto exclusivo da [fim da p. 220] voz. Na verdadeira narração,
a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do
trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga
coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry,
é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de
narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o
narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação
artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a
sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único? Talvez
se tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio, concebido
como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios
são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um
acontecimento, como a hera abraça um muro.
Assim
definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como
o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui
apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O
narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir
dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O
narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o
narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stevenson. O narrador
é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. [fim da p.
221]
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