AS ELEGIAS DE DUÍNO
Comentários para Elegias de Duíno.
Traduções
do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.
As
Elegia s de Duíno, de Rilke, constituem não só uma das mais importantes obras
da literatura alemã da primeira metade do século XX, como também uma das
poéticas mais significativas do nosso tempo.
Iniciadas em
1912, no castelo de Duíno, perto de Trieste, Rilke só as terminou dez anos
depois, em Fevereiro de 1922, na Suíça, quase simultaneamente com a criação de
uma outra obra, "Os Sonetos a Orfeu". Em Duíno, o poeta escrevera a I
, a II, parte da III e os primeiros versos da X elegia. Nos longos anos que se
seguiram ao primeiro impulso criador, ele conseguiu apenas concluir a III
(Paris, 1912), escrever a IV (Munique, 1915) e partes da VI e IX, estas últimas
por ocasião de sua viagem à Espanha, entre 1912 e 1913. E em fevereiro de 1922,
no castelo de Muzot, posto a sua disposição por um amigo - Walter Reinhart -
Rilke terminou então as Elegias, escrevendo os poemas que ainda faltavam, isto
é, parte da VI, a VII, a VIII, parte da IX, grande parte da X, e mais uma, a última,
que viria a ser a V.
Ainda que
várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo
poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece,
essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz -
pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade. Oculta para quem a
procure numa continuação por assim dizer linear, de um poema a outro, ela se
revela entretanto pelo sentido comum que os poemas possuem. "A unidade é
poética, não filosófica" disse Bowra.(...).
Embora se
possa dizer que as dificuldades da linguagem poética de Rilke sejam devidas à
circunstância de ser ele o poeta de um tempo que não sabe pensar poeticamente,
como disse Butler, não é menos certo que a dificuldade principal decorre de
fatores inerentes à própria obra, entre os quais uma certa ambigüidade
voluntária e mesmo procurada. Tudo isso concorre para que as elegias se
coloquem, como já salientou Romano Guardini, entre os textos mais difíceis da
literatura alemã.
As Elegias de
Duíno, condensam por assim dizer uma riquíssima experiência poética e
existencial, e estão de tal modo ligadas a episódios e experiências da própria
vida do poeta que, por vezes, só o conhecimento desses fatos pode lançar luz
sobre certas obscuridades.
As igrejas que
Rilke visitou em Roma e em Nápoles, a sua longa experiência de Paris, aqueles
amantes que ele encontrou, absortos em seu amor, no cais do Sena, os
saltimbancos que ele viu no Luxemburgo, o cordoeiro que ele conheceu em Roma, e
cujo trabalho lhe pareceu a repetição de um dos "gestos mais antigos da
humanidade", o oleiro à beira do Nilo, reminiscências de sua viagem à
Espanha, tudo isso se acha contido, embora às vezes transfigurado pelo ato
poético, nas Elegias de Duíno.
Escritas, como
foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural,
como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas
Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e
exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora
para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da
linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã. A
dificuldade lingüística das Elegia de Duíno reside muitas vezes, porém, no fato
de que a mensagem traduzida por elas atinge, não raramente, os limites do
dizível poético na forma espantosamente direta em que está vazada.
O tema central
das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao
redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do
poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação
desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem.
Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já
no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias.
O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma
realidade espiritual superior.(...)
Aos problemas
que nos foram revelados através dos temas precedentes (o anjo, os amantes, a
boneca, os saltimbancos, o herói e o animal), Rilke opõe afinal o tema da
metamorfose. Através dela o poeta encontrou para si o caminho que Malte buscara
inutilmente: o da confirmação de que a vida é enfim possível. Preso ao
cotidiano, e mais inseguro do que o animal (I e VIII); incapaz de se realizar
no amor que , todavia, num momento lhe parecera oferecer quase a eternidade, e
condenado ao perecimento incessante de seu próprio ser, como um cheiro que se
exala e se perde; nem anjo nem Boneca, nem real nem ator, com a sua máscara
cheia (IV); e ainda como os Saltimbancos da V elegia, que nos dão uma ilusão de
realidade, mas não a realidade mesma, o poeta, que como aquele Malte Laurids
Brigge ficara na "superfície da vida", descobre na metamorfose,
através da qual o heróis já se realizara, o segredo do seu destino.
"Amada, em parte alguma o mundo existirá senão em nós" Com razão
disse Schmidt-Pauli que neste verso está a chave das Elegias. Só interiormente,
o mundo das coisas efêmeras e perecíveis, que é o nosso mundo, continuará a
existir. O que "cai e desaparece" aos nossos olhos continua a existir
no coração do poeta."Nós somos as abelhas do invisível". Nous butinons
éperdument le miel du visible pour l'accumuler dans la grande rûche d'or de
l'invisible, disse Rilke na sua famosa carta a Hulewicz. Nessa transformação do
visível, que é o mundo dos olhos, no invisível que se acumula, transfigurado e
salvo, em nosso coração, está a essência da metamorfose.
E nisso está o
orfismo rilkeano: a poesia como instrumento para outro fim que não o puramente
estético. A partir de 1910,
a poesia de Rilke inicia aquilo que o poeta chamou
"a obra do coração". Para trás, Rilke deixava, ultrapassada e
superada, a "obra do olhar", sobre cuja formação o escultor Rodin
sobretudo exercera uma influência tão grande. Desse período são as
"Ding-Gedicht"; a esse período ainda pertence o "Malte Laurids
Brigge", onde já se pressentem todavia sinais de uma novo rumo. Superada,
porém, a fase precedente, que parece corresponder a uma etapa necessária em
toda evolução poética, Rilke inicia, celebrando com um poema intitulado
"Wendung", a obra do coração".
As Elegias
representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua
evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os
dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um
todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir.
Nas elegias, a
forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as
suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da
quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank
verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição
simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que
T. S. Eliot usou em "Waste Land".
Poeta
fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição. Talvez
seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos
modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o
primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver.
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