O problema da Narração em Walter Benjamin:
Uma tentativa de aproximar arte e filosofia
Dalva Aparecida Garcia (1)
"Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido
foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por trás do qual se
mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no
tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um
entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido - nessa textura - o sujeito se
desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções
construtivas de sua teia"( BARTHES,2002:71)
O trecho acima poderia constituir uma metáfora de um trabalho de pesquisa.
Muitas vezes, o pesquisador em busca da solução de seu problema se entrelaça na
própria teia de seu texto, continuamente aberto, porque se faz a cada novo fio
que se entrecruza na trama árdua dos conceitos.
Na busca de um encontro entre um texto que se constitui obra aberta, porque
comunica aquilo que aparentemente aparece como incomunicável (2), é que se constróem as teias deste texto.
Texto que nasce da problemática de como comunicar a filosofia e o próprio
filosofar enquanto exercício de reflexão a jovens; de como transformar a
produção filosófica em obra que merece ser analisada, mas que pode se fazer obra
que fala à razão e à emoção. Trata-se, em suma, de favorecer o reencontro com o
espanto em um mundo onde nada mais espanta. Desta forma, o desafio é encontrar
na própria produção filosófica, caminhos (não um caminho seguro, como
pretendiam Descartes, Locke e alguns filósofos da modernidade) para o resgate
do encanto do filosofar. A hipótese fundamental é que a linha tênue que marca a
filosofia e a literatura pode e deve ser estudada para comunicar o sentido do
humano em sua contingência; para fazer da filosofia na escola, reflexão viva
(porque toca a emoção e impulsiona o uso da razão) enquanto exercício de
problematização e análise.
Uma aproximação entre a literatura e a filosofia através do estudo de alguns
filósofos que, de alguma forma, utilizaram a narrativa enquanto instrumento do
filosofar ganha sentido quando, hoje, os envolvidos no ensino de filosofia se
perguntam: Para que filosofia? Como ensinar filosofia? Qual filosofia ensinar e
como?
Se existe algo em que a filosofia poderia colaborar na formação de jovens é
provocando um estranhamento que poderia deslocar, provocar a suspensão
dos juízos e dos valores para que seja possível a dialética da construção e da
desconstrução. A atitude do professor deve ser, então, acima de tudo,
provocativa.
Afirmou Alain de Botton, em artigo publicado na Folha de São Paulo em
23/08/98, cujo título é Para que serve a arte?
Os filósofos freqüentemente encaram a arte com um misto de
curiosidade e inveja. Ora, não são os capítulos finais dos livros de filosofia
que fazem as pessoas chorar (exceto os estudantes que choram de alívio);
escultores, músicos e novelistas conseguem agradar o nosso eu mais profundo de
uma maneira singular; impossível a qualquer filósofo. As pessoas podem
considerar Hegel e Hume inteligentes, mas era com Byron que elas queriam
dormir. Eis o que nos leva a questionar: o que é a arte e por que ela nos
domina de modo tão avassalador?
Embora a pergunta do pensador francês seja pertinente, ouso discordar. Em
primeiro lugar, porque se não podemos dormir e ter bons sonhos com Hegel e
Hume, o que dizer do tom delicioso e provocativo de Voltaire e Diderot ou dos
ensaios de Walter Benjamin?
A filosofia enquanto exercício conceitual crítico e provocativo produziu
grandes delícias que podem ser um bom instrumento para os fins que almejamos na
educação, porque capazes de comunicar razão e imaginação e conciliar arte e
filosofia. A tarefa não é impossível aos filósofos e merece a atenção dos
educadores interessados no ensino de filosofia.
Em segundo lugar, podemos duvidar da concepção de arte expressa no artigo,
talvez porque, hoje, dormir com Byron seja mais possuir o objeto dotado de
fetiche, do que entendê-lo enquanto representação do mundo através da
subjetividade. Ora, se a modernidade apostou suas fichas na razão como modelo
de representação, é necessário "reescrever a modernidade" como afirma
Lyotard, entendendo que a "modernidade escreve-se, inscreve-se sobre si
mesma, numa reescrita perpétua"(LYOTARD,1989:35), ou seja, é necessário
rever a linearidade temporal que nos permitiria usar as expressões
pré-modernidade ou pós-modernidade, como se fosse possível dominar o passado e
prever o futuro. O fato é que a razão que se pretendia autônoma perde-se em sua
própria finalidade, em sua própria teia. O feitiço virou-se contra o
feiticeiro: o que se pretendia representar, inverte a ordem do sujeito e do
objeto, ou melhor, faz desaparecer as fronteiras entre o sujeito que representa
e o objeto a ser representado.
A busca da autonomia da razão, a razão aliada à técnica e aos mecanismos do
mercado, provoca o desencantamento do mundo, a dessacralização da arte, a perda
da aura, como afirma Walter Benjamin.(BENJAMIN, 1985:164-173).
A modernidade coloca em questão todos os cânones que sustentariam o ideal de
beleza, de universalidade, de unidade. A era do novo e da novidade se impõe
como experiência do deslocamento, da estranheza. Não há como recuperar a
eternidade da obra - a "reprodutibilidade técnica" nos afasta do
autêntico, do original, da beleza sagrada dos grandes gênios criadores. Não há
mais lugar para a contemplação e para o sentimento de unidade, seja na arte ou
na filosofia. Tanto a arte como filosofia se deslocaram do domínio da
transcendência para a imanência. Instaura-se o domínio do fugaz, da fragmentação,
da virtualidade, da imagem que constrói e não da imagem que é construída.
Se a reescrita da modernidade nos permite, neste contexto, perguntar o que é
a arte; se a própria produção artística assume os riscos desta empreitada,
buscando rastros e restos de uma unidade que não pode se fazer presente, até
sob a pena de ver sua morte decretada, é porque a arte perdeu seu lugar sagrado
e, assim, pode subverter a ordem e infiltrar-se em campos e espaços em que não
se ousaria sonhar.
O que quero dizer é que a nostalgia do passado perdido poderá aprisionar as
forças criativas de um mundo que se abre em múltiplas possibilidades. A
pós-modernidade nos propõe um acerto de contas com a modernidade; como diria
Gilberto Gil "estou fechado pra balanço e o saldo pode ser bom". Não
sabemos se o saldo será bom, mas de qualquer forma, recupera-se o vir a ser e
não o dever ser.
A arte pode estar nas ruas, nas massas, na moda... Seus resíduos podem estar
nos museus e nas galerias. Não há como separar o joio do trigo, mas há como
buscar indícios e referências nas suas relações com a produção humana.
Já a produção filosófica parece continuar enclausurada nos Centros
Acadêmicos em busca da unidade perdida... E aqui ouso uma analogia: Assim como
para Benjamin "a arte de narrar está em vias de extinção porque a
sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção" (BENJAMIN,1985: ,
a filosofia terá seus dias marcados se não se desvencilhar de sua pretensão à
sabedoria, se não buscar outras formas de enfrentar suas dúvidas e angústias.
Por paradoxal que possa parecer, acredito que o próprio estudo da arte de
narrar, em todas as suas transmutações e contradições pode oferecer elementos
importantes para que a filosofia vá às ruas e às escolas.
Vejamos algumas transmutações e contradições apontadas no texto "O
Narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" de Walter
Benjamin (1985).
Benjamin inicia o texto afirmando que por mais familiar que nos pareça, o
narrador não estaria de fato entre nós. A descrição de Leskov como narrador não
nos aproxima dele, mas nos impõe uma certa distância oriunda de uma experiência
cotidiana: a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. Para
o autor os seres humanos estão se privando hoje da "faculdade de
intercambiar experiências" porque "as ações da experiência estão em
baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça"
(1985: 197) As rápidas mudanças que fazem com que nada permaneça como era,
torna a experiência da guerra e dos totalitarismos incomunicável.
Para o autor, as melhores narrativas escritas são aquelas que não se
distinguem das narrativas orais contadas, que se tornaram possíveis graças a
duas experiências que se aliam no sistema coorporativo artesanal: a experiência
de quem vai (do viajante, do comerciante) e a experiência de quem fica (do
camponês sedentário). Por isso, para Benjamin, a narrativa é comunicação
artesanal e encerra em si uma dimensão prática, de um conselho, de um
ensinamento moral ou de uma forma de vida. Nos adverte "Se dar conselhos
parece hoje antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis (...) Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma
sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada"
(1985: 200).
Por outro lado, se há forças que provocam a falência da arte de narrar
enquanto discurso vivo, também essas forças fazem aparecer "uma nova
beleza ao que está desaparecendo"(1985: 201) Benjamin refere-se, aqui, ao
romance moderno, onde o narrador não pode mais falar de maneira exemplar, mas
"na riqueza da vida humana anuncia a profunda perplexidade de quem a
vive" (1985:201). Não há nenhuma centelha de sabedoria no narrador do
romance, se é que podemos denominá-lo narrador, na perspectiva de Walter
Benjamin. O romance teve na burguesia ascendente as condições para o seu
florescimento. Mas a consolidação da burguesia fez nascer uma outra forma de
comunicação diferente do romance e da narração, a informação.
A informação aspira a uma explicação, a uma verificação imediata, elimina o
distante, o miraculoso, ela precisa "ser compreensível em si e para
si". Retomando uma história de Heródoto, Benjamin diferencia a informação
da arte de narrar: enquanto a informação só tem valor enquanto é nova, a
verdadeira narrativa não se entrega à imediatez do tempo para explicar os
fatos, pelo contrário, depois de muito tempo é capaz de suscitar espanto e
reflexão. Da mesma forma, se diferencia o cronista do historiador. "O
cronista é o narrador da história (...) O historiador é obrigado a explicar de
uma ou outra maneira, os episódios com que lida, e não pode absolutamente
contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo"
(BENJAMIN, 1985: 209).
A narrativa tem seu fundamento na memória, na idéia de reminiscência que
funda a cadeia da tradição. A rememoração, musa do romance, apela a uma memória
perpetuadora e se dirige a fatos difusos. Afirma Benjamin que o sentido da vida
é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é
outra senão a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição
dessa vida. Num caso, o sentido da vida, e no outro, a moral da história, essas
duas palavras distinguem entre si o romance e a narrativa. Se na narrativa
podemos perguntar o que aconteceu depois, no romance não resta nada mais a
fazer do que diante do seu fim refletir sobre o sentido da vida.
Essa pequena síntese, derivada de algumas considerações de Benjamin contidas
em "O narrador" , merece uma análise mais profunda de alguns
conceitos contidos no conjunto de sua obra. Por hora, resta-me uma intrigante
questão: Estaria mesmo a possibilidade de narrar acabada? Se o romance surge da
liberação das forças criadoras para se inscrever na descrição de uma vida
difusa e se transformar em possibilidade de reflexão, estaríamos mesmo
condenados à informação? Ainda pensando na problemática que me conduziu a
escolha do tema: Não estaríamos nos cursos de filosofia para jovens
submetendo-os à historiografia das idéias e dos pensadores? Submetendo-os a
informações sem sentido que impediriam a reflexão sobre os múltiplos sentidos,
porque estaríamos - professores e alunos - aprisionados a pretensos sistemas
filosóficos que julgamos capazes de explicar a racionalidade do mundo? Em suma,
não estaríamos esquecendo os descaminhos da modernidade para nos
transformarmos, enquanto educadores, em uma certa espécime de conselheiro que
esqueceu a arte de narrar e a trama enigmática do romance?
A análise de Benjamin, neste sentido, parece-me reveladora. Afirma que
metade da arte de narrar está no fato de que na narrativa se evita explicações.
O leitor, neste caso, estaria livre para interpretar a história como quisesse,
expandindo a amplitude do que foi narrado. Benjamin, ao apontar para a riqueza
do trabalho quase artesanal de Leskov, recupera um relato das Histórias
de Heródoto, o apontando como o primeiro narrador grego. Vejamos a própria
descrição e análise de Benjamin:
No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um
relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit
foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu
humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que
passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou este cortejo de modo que o
prisioneiro pudesse ver a filha degradada à condição de criada, indo ao poço
com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com
esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e,
quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado,
continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável,
na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais
profundo desespero.
Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A
informação só tem valor no momento em que ela é nova. Ela só vive nesse
momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se
explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva
suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim,
Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: por que ele só se lamenta
quando reconhece seu servidor? Sua resposta é que ele 'já estava tão cheio de
tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas'. É a
explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: 'O destino da família
real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino. Ou: 'as grandes dores são
contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor
foi essa distensão'. Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos.
Por isso, essa história do rei egípcio ainda é capaz, depois de milênios, de
suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que
durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das
pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas".
(BENJAMIN,1985:204)
Benjamim utiliza a analogia ao invés da lógica explicativa em sua análise.
Se por um lado atesta a extinção da arte de narrar; por outro lado, não nega o
encanto e a perplexidade que ainda hoje nos provoca uma história bem contada.
Nos bombardeia com metáforas:
O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O
menor sussuro nas folhagens nos assusta. Seus ninhos - as atividades
intimamente associadas ao tédio- já se extinguiram na cidade e estão em vias de
extinção no campo. Com isso desaparece o dom de ouvir, e desaparece a
comunidade dos ouvintes... Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve uma história" (BENJAMIN,1985:204).
O tecido da trama dos conceitos não se encerra, mas se abre diante da
complexidade da teia. Assim como na história de Heródoto, poderíamos nos
perguntar: Por que Benjamin nos conduz "as forças germinativas"
da narrativa para depois decretar sua morte? Saudosismo? Melancolia? Ou esforço
filosófico capaz de análise crítica e criação?
Por fim, poderíamos nos indagar: Por que enquanto professores de filosofia
nos esquivamos desse tecido, da palavra falada, criada e recriada na história
viva dos conceitos? Afirma o compositor Eduardo Gudim "As palavras são
sinais que a gente não lava", talvez por isso lavamos as mãos de nosso
compromisso com a história e, por que não, com a própria filosofia.
Bibliografia
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SILVA, Marcio Seligmann (org), Leituras de Walter Benjamin. SP:
FAPESP: Annablume, 1999.
(1) Coordenadora Pedagógica do Centro
Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC).
(2) Paul Ricouer a comunicação não é apenas um
fato, mas um enigma e até mesmo um milagre. Considerando que um acontecimento
que pertence a uma consciência não pode transferir-se para outra consciência, o
que se transfere de um para o outro não é a experiência vivida, mas sua
significação. A experiência continua única e privada, mas seu sentido, a sua
significação pública. (RICOUER, 2000:28)
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