quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"Poema de los dones" , Jorge Luis Borges

Poema de los dones, Borges

trad. de Josely Vianna Baptista




Poema dos dons



Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria.
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.

Da cidade de livros tornou donos
estes olhos sem luz, que só concedem
em ler entre as bibliotecas dos sonhos
insensatos parágrafos que cedem

as alvas a seu afã. Em vão o dia
prodiga-lhes seus livros infinitos,
árduos como os árduos manuscritos
que pereceram em Alexandria.

De fome e de sede (narra uma história grega)
morre um rei entre fontes e jardins;
eu fatigo sem rumo os confins
dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
e o Ocidente, centúrias, dinastias,
símbolos, cosmos e cosmogonias
brindam as paredes, mas inutilmente.

Em minha sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.

Algo, que por certo não se vislumbra
no termo acaso, rege estas coisas;
outro já recebeu em outras nebulosas
tardes os muitos livros e a penumbra.

Ao errar pelas lentas galerias
sinto às vezes com vago horror sagrado
que sou o outro, o morto, habituado
aos mesmos passos e aos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
de uma só sombra e de um plural?
O nome que assina é essencial,
se é indiviso e uno este anátema?

Groussac ou Borges, olho este querido
mundo que se deforma e que se apaga
numa empalidecida cinza vaga
que se parece ao sonho e ao olvido.

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