terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A Visão Dionisíaca do Mundo, Friedrich Nietzsche


 A Visão Dionisíaca do Mundo, Friedrich Nietzsche


I
Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo calam a doutrina secreta de sua visão de mundo [Weltanschauung], estabeleceram como dupla fonte de sua arte duas divindades, Apolo e Dioniso. Esses nomes representam, no domínio da arte, oposições de estilo que quase sempre caminham emparelhadas em luta uma com a outra, e somente uma vez, no momento de reflorescimento da “Vontade” helênica (Nietzsche usa o termo helênico para toda a cultura grega e não exclusivamente para o período helenístico), aparecem fundidas na obra de arte da tragédia ática. O homem alcança em dois estados o sentimento de delícia em relação à existência, a saber, no sonho e na embriaguez.
A bela aparência do mundo onírico, no qual cada homem é um artista pleno, é o pai de toda arte plástica e, como iremos ver, também de uma metade importante da poesia. Gozamos no entendimento imediato da figura, todas as formas nos falam; nada há de indiferente e desnecessário. No entanto, em meio à suprema vida dessa realidade de sonho temos ainda o reluzente sentimento de sua aparência.
Somente quando esse sentimento cessa, começam os efeitos patológicos (O delírio em que o sonho é confundido com a realidade), nos quais o sonho não mais revigora e a força natural curativa de seus estados se interrompem. Porém, dentro daqueles limites (dentro dos limites nos quais o sonho é sentido como aparência, como ilusão), não são somente as imagens agradáveis e amistosas que procuramos em nós com aquela inteligibilidade universal: também o grave, o triste, o baço, o sombrio são contemplados [angeschaut] com o mesmo prazer, com a ressalva de que também aqui o véu da aparência precisa estar em movimento flutuante e não pode recobrir completamente as formas fundamentais do real. Enquanto, portanto, o sonho é o jogo do homem individual com o real, a arte do escultor (em sentido lato) é o jogo com o sonho.

(Nietzsche nos dá uma importante indicação para a compreensão do apolinismo: a pulsão apolínea estética natural do sonho é um jogo com a realidade – ou seja, como ilusão, o sonho é sempre um furtar-se à realidade, é sempre uma aparição que ilude sem chegar, porém, às conseqüências do real; a arte plástica, como diz N., é, correlativamente, um jogo com o sonho – ou seja, o artista plástico grego, procurou fazer o real corresponder ao sonho, obrigando as suas matérias plásticas a se conformarem com o sonho na realização da obra de arte, uma irremediável distância, e por conseqüência, uma eterna insatisfação.)

A estátua como bloco de mármore é deveras real. Todavia, o real da estátua como figura de sonho é a pessoa viva do deus. Enquanto a estátua continuar pairando como imagem de fantasia diante dos olhos do artista, ele se manterá com o real (ou seja, ainda sonha, ou devaneia). No momento em que traduz a imagem para o mármore, ele joga com o sonho.

Mas em que sentido Apolo pôde se tornar uma divindade artística?

(A perspectiva artística na humanidade helênica, não helenística, surgiu com o apolinismo, de onde concluímos que para que Dioniso tivesse sido assumido artisticamente por esta humanidade fora necessário como antecedente justamente o apolinismo inaugurando a vocação essencial à civilização grega. Por isso o dionisismo culmina, segundo N., co a obra de arte apolíneo-dionisíaca, ou seja, com a sua manifestação estética mais acabada.)

Somente na medida em que é o deus da representação onírica. Ele é o “aparente” por completo: o deus do sol e da luz na raiz mais profunda, o deus que se revela no brilho. A “beleza” é seu elemento: eterna juventude o acompanha. Mas também é o seu reino a bela aparência do mundo do sonho: a verdade mais elevada (que por sua vez tem origem na concepção esotérica, matemática e musical de Pitágoras, que por sua vez desembocará no plano ideal de Platão e na sua tentativa de excluir a arte da concepção original pitagórica), a perfeição desses estados, em contraposição à realidade diurna lacunarmente inteligível, elevam-no a deus vaticinador, mas tão certamente também a deus artístico. O deus da bela aparência precisa ser ao mesmo tempo o deus do conhecimento verdadeiro. (aqui acho que N. bebe dessa concepção pitagórica) Tampouco pode faltar na essência de Apolo aquele tênue limite, que a imagem do sonho não pode ultrapassar, para não agir patologicamente – quando a aparência não só ilude mas engana (e aqui, será que N. está regorjitando Platão?) : aquela delimitação comedida, aquela liberdade distante das agitações mais selvagens, aquela sabedoria e calma do deus escultor. Seu olho precisa ser “solarmente” calmo, em que a força gerativa da Vontade na natureza se faz sentir sobremaneira: mesmo que se encolerize e olhe com arrelia, faz sobre ele a consagração da boa aparência.

A arte dionisíaca, por outro lado, repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento. São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural ingênuo até o esquecimento de si característico da embriaguez, a pulsão da primavera [Frühlingstrieb] e a bebida narcótica. Seus efeitos estão simbolizados na figura de Dioniso.
O principium individuationis é rompido [princípio da individuação] em ambos os estados (dionisíacos), o subjetivo desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do natural-universal. A individuação é abolida pela força gerativa da natureza no homem, pelo constante lançar-se da Vontade na natureza para a criação. Essa força gerativa é a potência telúrica, mais apropriadamente representada na humanidade pela vertente feminina.
As festas de Dioniso não firmam apenas a ligação entre os homens, elas também reconciliam homem e natureza. [A separação entre os homens é veiculada sobretudo na vertente masculina, caracterizada por seu impulso guerreiro]. Voluntariamente a terra traz os seus dons, as bestas mais selvagens aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dioniso é puxado por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta (os limites de castas e classe entre os homens foram introduzidos primordialmente, de acordo com o pensamento de N. , pela vertente masculina sob a hegemonia do guerreiro), que a necessidade [Not] e o arbítrio estabeleceram entre os homens, desapareceram: o escravo é homem livre, o nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo coro báquico. (aqui podemos ver uma alusão ao “Hino à alegria” de Schiller, que serve de texto ao quarto movimento da 9.a Sinfonia de Beethoven)

(...)

Assim como as bestas falam e a terra dá leite e mel, também soa a partir dele algo sobrenatural. Ele (o homem sob os efeitos da festa, e do vinho, da comunhão coletiva, da ligação com as forças telúricas, da fusão com a natureza) se sente como deus: o que outrora vivia somente em sua força imaginativa (apolínea), agora ele sente em si mesmo. O que são para ele agora imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem. Este homem conformado pelo artista Dioniso, está para a natureza assim como a estátua está para o artista apolíneo.
(Neste parágrafo, N. deixa-nos vislumbrar o sentido do dionisismo grego, qual seja, o de apropriar-se artisticamente das forças gerativas e plasmadoras da natureza. Dançando e cantando os cortejos dionisíacos gregos assumem artisticamente o que em outros povos se manifesta como vigência orgiástica.)
Ora, se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, então o criar do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez. Este estado deixa-se conceber somente alegoricamente, se não se o experimentou por si próprio: é alguma coisa de semelhante a quando se sonha e se vislumbra o sonho como sonho. Assim, o servidor de Dioniso precisa estar embriagado e ao mesmo tempo ficar à espreita atrás de si, como observador. O caráter artístico dionisíaco não se mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim em sua conjugação.
Essa conjugação caracteriza o ponto alto da helenidade: originalmente, apenas Apolo é um deus helênico da arte. Além disso, foi o seu poder que estabeleceu a tal ponto medidas ao Dioniso que irrompia tempestuoso da Ásia que a mais bela aliança fraternal pôde surgir. Aqui se concebe mais facilmente o inacreditável idealismo da essência helênica: a partir de um culto à natureza, que entre os asiáticos significa o mais cru desencadeamento dos impulsos [Triebe] mais baixos, uma pan-hetairica vivência bestial, que detona por um tempo determinado todos os vínculos sociais, surgia nos helênicos uma festa de libertação do mundo, um dia de apoteose. Todos os impulsos sublimes de sua essência revelavam-se nesta idealização da orgia.
Nunca, todavia, a helenidade esteve em maior perigo do que na tempestuosa irrupção do novo deus. Nunca, por sua vez, a sabedoria do Apolo délfico se mostrou numa luz mais bela. Resistindo, primeiro, ele envolveu com a mais delicada teia o poderoso opositor, de modo que este mal pôde perceber que entrava passo a passo numa semicatividade. Na medida em que os sacerdotes délficos discerniam o profundo efeito do novo culto nos processos de regeneração social e o fomentavam segundo o seu propósito político-religioso, na medida em que o artista apolíneo com refletida moderação aprendia a partir da arte revolucionária do serviço de Baco, na medida, finalmente, em que o senhorio sobre o ano, na ordenação do culto délfico, foi dividido entre Apolo e Dioniso, ambos os deuses saíram vencedores da disputa: um reconciliação no campo de batalha.

(...)

Quanto mais forte medrava o espírito da arte apolínea, mais livre se desenvolvia o deus irmão Dioniso: ao mesmo tempo que o primeiro chegava ao completo aspecto imóvel da beleza (é errônea essa concepção de N. de que a escultura clássica é imóvel, estática), no tempo de Fídias, o outro interpretava na tragédia o enigma e o horror do mundo, exprimindo na música trágica o mais íntimo pensamento da natureza, o tecer da Vontade em e para além de todos os fenômenos.

(...)

Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percorrer de todas as escalas da alma, por ocasião das agitações narcóticas ou na pulsão de primavera [Frühlingstrieb], a natureza se expressa em sua força mais elevada: ela torna a unir os seres isolados e os deixa se sentirem como um único; de modo que o principium individuationis surge como um estado persistente de fraqueza da Vontade.
Quanto mais a Vontade está degradada, tanto mais egoísta e arbitrário é desenvolvido o indivíduo, tanto mais fraco é o organismo a que ele serve. Por isso, naqueles estados irrompe como que um impulso sentimental da Vontade (nesta passagem N. quer se referir justamente à força atrativa da Vontade para o vórtice do uno-originário), um “suspirar da criatura” por algo que foi perdido: desde o mais alto prazer [Lust] ressoa o grito de terror, o anelante soar do lamento por uma perda [Verlust] irreparável. A natureza exuberante celebra as suas saturnais e os seus funerais ao mesmo tempo. Os afetos de seus sacerdotes estão misturados da maneira a mais estranha, dores despertam prazer, o júbilo arrebata do peito sons torturados. O deus, δλυσιος (Dioniso “O que liberta; o que relaxa ou enfraquece os membros”.), libertou todas as coisas de si mesmas, tudo transmutou. O canto e a música das massas assim agitadas, nas quais a natureza foi dotada de voz e movimento, eram algo de completamente novo e inaudito para o mundo greco-homérico. Para esse mundo, ele era algo de oriental que ele tinha primeiro que dominar, e mesmo dominou com a sua imensa força rítmica imagética, como dominou também, ao mesmo tempo, o estilo do templo egípcio (os templos e as estátuas egípcias eram, por assim dizer, hirtos: como podia se tornar a obra de arte apolínea – como demonstra o período arcaico – se não celebrasse um reconciliação com as forças dionisíacas). Foi o povo apolíneo que colocou o instinto [Instikt] superpoderoso em grilhões: ele subjugou o mais perigoso elemento da natureza, suas mais selvagens bestas.
Admira-se o poder idealista da helenidade no mais alto grau se se compara sua espiritualização dos festejos dionisíacos com o que surgiu em outros povos a partir da mesma origem. Semelhantes são arcaicas e comparáveis por toda parte, sendo o exemplo mais célebre o das chamadas Sáceas na Babilônia. Aqui toda ligação política e social era, durante cinco dias de festa, dilacerada; mas o centro estava na ausência de barreiras demarcatórias para sexualidade, na aniquilação de todo laço familiar através do heterismo ilimitado. A contrapartida de tudo isto se oferece na imagem da celebração dionisíaca grega que Eurípedes esboça em As Bacantes: dessa imagem flui o mesmo encanto, a mesma musical embriaguez de transfiguração que Skopas e Praxíteles concretizavam em estátua.


“ (...)
Sobre uma pastagem alpestre o mensageiro observa três coros de mulheres dispersas deitadas sobre o solo e em decentes atitudes: muitas mulheres se encostaram em troncos de pinheiros: o sono reina em toda parte. Repentinamente a mãe de Penteu pôe-se a jubilar, o sono é afugentado, todas se levantam de um salto, um modelo de nobres costumes; as jovens donzelas e as mulheres deixam cair os seus cachos de cabelos sobre os ombros, a pele de corço é posta em ordem, caso os seus atilhos e laços tenham se desfeito durante o sono. Elas se cingem com serpentes que lambem familiarmente as suas faces, algumas mulheres tomam nos braços filhotes de lobos e de corços e os amamentam. Todas se enfeitam com coroas de hera e grinaldas, uma batida de tirso no rochedo e água jorra aos borbotões: um golpe com o bastão no solo e alteia-se uma fonte de vinho. Doce mel goteja dos ramos, se alguém toca o chão apenas com a ponta dos dedos jorra leite branco como neve.”
[Eurípedes, As Bacantes]

Esse é um mundo totalmente encantado, a natureza celebra a sua festa de reconciliação com o homem. O mito diz que Apolo reuniu novamente o Dioniso despedaçado. Essa é a imagem do Dioniso recriado por Apolo, salvo de seu despedaçamento asiático.


II
Os deuses gregos, na perfeição com que os encontramos já em Homero, não devem ser concebidos como rebentos da penúria [Not] e da necessidade. Tas entidades não foram inventadas certamente pelo ânimo [Gemüt] abalado pela angústia. Não foi para voltar as costas à vida que uma genial fantasia projetou suas imagens no azul. A partir delas fala uma religião da vida, não do dever, da ascese ou da espiritualidade. Todas estas figuras respiram o triunfo da existência, um sentimento exuberante de vida acompanha o seu culto. Elas não apresentam exigências: nelas o existente é divinizado, seja ele bom ou mau.  (...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário