A
Visão Dionisíaca do Mundo, Friedrich Nietzsche
I
Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo
calam a doutrina secreta de sua visão de mundo [Weltanschauung], estabeleceram como dupla fonte de sua arte duas
divindades, Apolo e Dioniso. Esses nomes representam, no domínio da arte,
oposições de estilo que quase sempre caminham emparelhadas em luta uma com a
outra, e somente uma vez, no momento de reflorescimento da “Vontade” helênica
(Nietzsche usa o termo helênico para
toda a cultura grega e não exclusivamente para o período helenístico), aparecem
fundidas
na obra de arte da tragédia ática. O homem alcança em dois
estados o sentimento de delícia em relação à existência, a saber, no
sonho e na embriaguez.
A bela aparência do mundo onírico, no qual cada homem é um
artista pleno, é o pai de toda arte plástica e, como iremos ver, também
de uma metade importante da poesia. Gozamos no entendimento imediato da figura, todas as formas nos falam; nada
há de indiferente e desnecessário. No entanto, em meio à suprema vida dessa
realidade de sonho temos ainda o reluzente sentimento de sua aparência.
Somente quando esse sentimento cessa, começam os efeitos
patológicos (O delírio em que o sonho é confundido com a realidade), nos quais
o sonho não mais revigora e a força natural curativa de seus estados se
interrompem. Porém, dentro daqueles limites (dentro dos limites nos quais o
sonho é sentido como aparência, como ilusão), não são somente
as imagens agradáveis e amistosas que procuramos em nós com aquela inteligibilidade
universal: também o grave, o triste, o baço, o sombrio são contemplados [angeschaut] com o mesmo prazer, com a
ressalva de que também aqui o véu da aparência precisa estar em movimento
flutuante e não pode recobrir completamente as formas fundamentais do real.
Enquanto, portanto, o sonho é o jogo do homem individual com o real, a arte
do escultor (em sentido lato) é o jogo com o sonho.
(Nietzsche nos dá uma importante indicação para a
compreensão do apolinismo: a pulsão apolínea estética natural do sonho
é um jogo com a realidade – ou seja, como ilusão, o sonho é sempre um
furtar-se à realidade, é sempre uma aparição que ilude sem chegar, porém, às
conseqüências do real; a arte plástica, como diz N., é, correlativamente,
um jogo com o sonho – ou seja, o artista plástico grego, procurou fazer o
real corresponder ao sonho, obrigando as suas matérias plásticas a se
conformarem com o sonho na realização da obra de arte, uma irremediável
distância,
e por conseqüência, uma eterna insatisfação.)
A estátua como bloco de mármore é deveras real. Todavia, o real
da estátua como figura de sonho é a pessoa viva do deus. Enquanto a estátua
continuar pairando como imagem de fantasia diante dos olhos do artista, ele se
manterá com o real (ou seja, ainda sonha, ou devaneia). No momento em que
traduz a imagem para o mármore, ele joga com o sonho.
Mas em que sentido Apolo pôde se tornar uma divindade artística?
(A perspectiva artística na humanidade helênica, não
helenística, surgiu com o apolinismo, de onde concluímos que para que Dioniso
tivesse sido assumido artisticamente por esta humanidade fora necessário como
antecedente justamente o apolinismo inaugurando a vocação essencial à
civilização grega. Por isso o dionisismo culmina, segundo N., co a obra de arte
apolíneo-dionisíaca,
ou seja, com a sua manifestação estética mais acabada.)
Somente na medida em que é o deus da representação onírica.
Ele é o “aparente” por completo: o deus do sol e da luz na raiz mais
profunda, o deus que se revela no brilho. A “beleza” é seu elemento:
eterna juventude o acompanha. Mas também é o seu reino a bela aparência do mundo do
sonho: a verdade mais elevada (que por sua vez tem origem na concepção
esotérica, matemática e musical de Pitágoras, que por sua vez desembocará no plano
ideal de Platão e na sua tentativa de excluir a arte da concepção original
pitagórica), a perfeição desses estados, em contraposição à realidade diurna
lacunarmente inteligível, elevam-no a deus vaticinador, mas tão certamente
também a deus artístico. O deus da bela aparência precisa ser ao
mesmo tempo o deus do conhecimento verdadeiro. (aqui acho que N. bebe
dessa concepção pitagórica) Tampouco pode faltar na essência de Apolo aquele
tênue limite, que a imagem do sonho não pode ultrapassar, para não agir
patologicamente – quando a aparência não só ilude mas engana (e aqui, será que
N. está regorjitando Platão?) : aquela delimitação comedida, aquela liberdade
distante das agitações mais selvagens, aquela sabedoria e calma do deus
escultor. Seu olho precisa ser “solarmente” calmo, em que a força
gerativa da Vontade na natureza se faz sentir sobremaneira: mesmo que
se encolerize e olhe com arrelia, faz sobre ele a consagração da boa aparência.
A arte dionisíaca, por outro lado,
repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento. São dois os poderes
que principalmente elevam o homem natural ingênuo até o esquecimento
de si característico da embriaguez, a pulsão da primavera [Frühlingstrieb] e a bebida narcótica.
Seus efeitos estão simbolizados na figura de Dioniso.
O principium individuationis é
rompido [princípio da individuação] em ambos os estados (dionisíacos), o
subjetivo
desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do
natural-universal. A individuação é abolida pela força gerativa da natureza no homem, pelo
constante lançar-se da Vontade na natureza para a criação. Essa
força gerativa é a potência telúrica, mais apropriadamente representada
na humanidade pela vertente feminina.
As festas de Dioniso não firmam apenas a ligação entre os
homens, elas também reconciliam homem e natureza. [A separação entre os homens é
veiculada sobretudo na vertente masculina, caracterizada por seu impulso
guerreiro]. Voluntariamente a terra traz os seus dons, as bestas mais
selvagens aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dioniso é
puxado por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta (os
limites de castas e classe entre os homens foram introduzidos primordialmente,
de acordo com o pensamento de N. , pela vertente masculina sob a hegemonia do
guerreiro), que a necessidade [Not] e
o arbítrio estabeleceram entre os homens, desapareceram: o escravo é homem
livre, o nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo coro báquico. (aqui
podemos ver uma alusão ao “Hino à alegria” de Schiller, que serve de texto ao
quarto movimento da 9.a Sinfonia de Beethoven)
(...)
Assim como as bestas falam e a terra dá leite e mel, também soa a
partir dele algo sobrenatural. Ele (o homem sob os efeitos da festa, e
do vinho, da comunhão coletiva, da ligação com as forças telúricas, da fusão
com a natureza) se sente como deus: o que outrora vivia somente em sua força
imaginativa (apolínea), agora ele sente em si mesmo. O que são para ele agora
imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha
tão extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O
poder artístico da natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui:
uma argila mais nobre é aqui modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado:
o homem. Este homem conformado pelo artista Dioniso, está para a natureza assim
como a estátua está para o artista apolíneo.
(Neste parágrafo, N. deixa-nos vislumbrar o sentido do
dionisismo grego, qual seja, o de apropriar-se artisticamente das forças
gerativas e plasmadoras da natureza. Dançando e cantando os cortejos
dionisíacos gregos assumem artisticamente o que em outros povos se manifesta
como vigência orgiástica.)
Ora, se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, então
o criar do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez. Este estado deixa-se
conceber somente alegoricamente, se não se o experimentou por si próprio: é
alguma coisa de semelhante a quando se sonha e se vislumbra o sonho como sonho.
Assim, o servidor de Dioniso precisa estar embriagado e ao mesmo tempo ficar à
espreita atrás de si, como observador. O caráter artístico dionisíaco não se
mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim em sua conjugação.
Essa conjugação caracteriza o ponto alto da helenidade:
originalmente, apenas Apolo é um deus helênico da arte. Além disso, foi o seu
poder que estabeleceu a tal ponto medidas ao Dioniso que irrompia
tempestuoso da Ásia que a mais bela aliança fraternal pôde surgir. Aqui se
concebe mais facilmente o inacreditável idealismo da essência helênica: a
partir de um culto à natureza, que entre os asiáticos significa o mais cru
desencadeamento dos impulsos [Triebe]
mais baixos, uma pan-hetairica
vivência bestial, que detona por um tempo determinado todos os vínculos
sociais, surgia nos helênicos uma festa de libertação do mundo, um dia
de apoteose. Todos os impulsos sublimes de sua essência revelavam-se nesta
idealização da orgia.
Nunca, todavia, a helenidade esteve em maior perigo do que
na tempestuosa irrupção do novo deus. Nunca, por sua vez, a sabedoria do Apolo
délfico se mostrou numa luz mais bela. Resistindo, primeiro, ele envolveu com a
mais delicada teia o poderoso opositor, de modo que este mal pôde perceber que
entrava passo a passo numa semicatividade. Na medida em que os sacerdotes délficos
discerniam o profundo efeito do novo culto nos processos de regeneração social
e o fomentavam segundo o seu propósito político-religioso, na medida em que o
artista apolíneo com refletida moderação aprendia a partir da arte
revolucionária do serviço de Baco, na medida, finalmente, em que o senhorio
sobre o ano, na ordenação do culto délfico, foi dividido entre Apolo e Dioniso,
ambos os deuses saíram vencedores da disputa: um reconciliação no campo de
batalha.
(...)
Quanto mais forte medrava o espírito da arte apolínea, mais
livre se desenvolvia o deus irmão Dioniso: ao mesmo tempo que o primeiro
chegava ao completo aspecto imóvel da beleza (é errônea essa concepção de
N. de que a escultura clássica é imóvel, estática), no tempo de Fídias, o outro
interpretava na tragédia o enigma e o horror do mundo, exprimindo na música
trágica o mais íntimo pensamento da natureza, o tecer da Vontade em e para além
de todos os fenômenos.
(...)
Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percorrer de todas as
escalas da alma, por ocasião das agitações narcóticas ou na pulsão de primavera
[Frühlingstrieb], a
natureza se expressa em sua força mais elevada: ela torna a unir os seres
isolados e os deixa se sentirem como um único; de modo que o principium individuationis surge como um
estado persistente de fraqueza da Vontade.
Quanto mais a Vontade está degradada, tanto mais egoísta e
arbitrário é desenvolvido o indivíduo, tanto mais fraco é o organismo a que ele
serve. Por isso, naqueles estados irrompe como que um impulso sentimental da Vontade (nesta
passagem N. quer se referir justamente à força atrativa da Vontade para o
vórtice do uno-originário), um “suspirar
da criatura” por algo que foi perdido: desde o mais alto prazer [Lust] ressoa o grito de terror, o
anelante soar do lamento por uma perda [Verlust]
irreparável. A natureza exuberante celebra as suas saturnais e os seus funerais ao
mesmo tempo. Os afetos de seus sacerdotes estão misturados da maneira a
mais estranha, dores despertam prazer, o júbilo arrebata do peito sons
torturados. O deus, δλυσιος (Dioniso “O que liberta; o que
relaxa ou enfraquece os membros”.), libertou todas as coisas de si mesmas, tudo
transmutou. O canto e a música das massas assim agitadas, nas quais a natureza foi
dotada de voz e movimento, eram algo de completamente novo e inaudito
para o mundo greco-homérico. Para esse mundo, ele era algo de oriental que ele
tinha primeiro que dominar, e mesmo dominou com a sua imensa força rítmica
imagética, como dominou também, ao mesmo tempo, o estilo do templo egípcio (os
templos e as estátuas egípcias eram, por assim dizer, hirtos: como podia se
tornar a obra de arte apolínea – como demonstra o período arcaico – se não
celebrasse um reconciliação com as forças dionisíacas). Foi o povo apolíneo que
colocou o instinto [Instikt]
superpoderoso em grilhões: ele subjugou o mais perigoso elemento da natureza,
suas mais selvagens bestas.
Admira-se o poder idealista da helenidade no
mais alto grau se se compara sua espiritualização dos festejos
dionisíacos com o que surgiu em outros povos a partir da mesma origem.
Semelhantes são arcaicas e comparáveis por toda parte, sendo o exemplo mais
célebre o das chamadas Sáceas na
Babilônia. Aqui toda ligação política e social era, durante cinco dias de
festa, dilacerada; mas o centro estava na ausência de barreiras demarcatórias
para sexualidade, na aniquilação de todo laço familiar através do heterismo
ilimitado. A contrapartida de tudo isto se oferece na imagem da celebração
dionisíaca grega que Eurípedes esboça em As Bacantes:
dessa imagem flui o mesmo encanto, a mesma musical embriaguez de transfiguração
que Skopas e Praxíteles concretizavam em estátua.
“ (...)
Sobre uma pastagem alpestre o mensageiro observa três coros
de mulheres dispersas deitadas sobre o solo e em decentes atitudes: muitas
mulheres se encostaram em troncos de pinheiros: o sono reina em toda parte.
Repentinamente a mãe de Penteu pôe-se a jubilar, o sono é afugentado, todas se
levantam de um salto, um modelo de nobres costumes; as jovens donzelas e as
mulheres deixam cair os seus cachos de cabelos sobre os ombros, a pele de corço
é posta em ordem, caso os seus atilhos e laços tenham se desfeito durante o
sono. Elas se cingem com serpentes que lambem familiarmente as suas faces,
algumas mulheres tomam nos braços filhotes de lobos e de corços e os amamentam.
Todas se enfeitam com coroas de hera e grinaldas, uma batida de tirso no
rochedo e água jorra aos borbotões: um golpe com o bastão no solo e alteia-se
uma fonte de vinho. Doce mel goteja dos ramos, se alguém toca o chão apenas com
a ponta dos dedos jorra leite branco como neve.”
[Eurípedes, As
Bacantes]
Esse é um mundo totalmente encantado, a natureza celebra a sua festa de
reconciliação com o homem. O mito diz que Apolo reuniu novamente o Dioniso
despedaçado. Essa é a imagem do Dioniso recriado por Apolo, salvo de seu
despedaçamento asiático.
II
Os deuses gregos, na perfeição com que os encontramos já em
Homero, não devem ser concebidos como rebentos da penúria [Not] e da necessidade. Tas entidades não foram inventadas
certamente pelo ânimo [Gemüt] abalado
pela angústia. Não foi para voltar as costas à vida que uma genial fantasia
projetou suas imagens no azul. A partir delas fala uma religião da vida, não
do dever, da ascese ou da espiritualidade. Todas estas figuras respiram o
triunfo da existência, um sentimento exuberante de vida acompanha o seu culto.
Elas não apresentam exigências: nelas o existente é divinizado, seja ele bom ou
mau. (...)
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