Maria Gabriela Llansol
o começo de um livro é precioso
34
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.
294
Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.
Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.
Onde vais drama-poesia?
(...)
Eu nasci para acompanhar a voz,
fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que
existe, o caminho caminha,
eu deslumbro-me quando o tempo suspende,
e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo. Como, de
resto, é evidente, não tive intenção de conceber-me. Dei comigo já sentada no
quarto de sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos.
Ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação era exata para me tornar
equilibrada, ou útil. No quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas
grandes janelas de sacada mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do
corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam,
havia um fantasma acocorado à entrada e que afinal, nada mais era do que, a
certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado. Descobri, que se, em
vez de me concentrar na sombra do corredor, me deitasse de costas a olhar a
mancha rutilante, o meu olhar poderia realizar o caminho inverso da luz e
pousar no ramo mais alto da árvore e aprender com esta a produzir clorofila – a
primeira matéria do poema.
Essa
postura, no entanto, tornou-me malcriada. Eu deveria crescer na direção do
corredor, e estava a crescer na direção da árvore. Estive quase a dar ouvidos a
essa voz humana que insistia que eu estava a crescer mal. E, de fato, era uma
postura estranha. O meu corpo permanecia deitado,
no chão do quarto,
enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas. Com o tempo,
como seria aquele corpo, separado da poesia, ou com esta apenas a brotar do seu
olhar? Tanto mais que, lá do alto, o poema via tudo de cima e quase nada via do
que se passava em baixo, à volta do seu corpo, não sentia a dor que este
sentia,
a sua falta de espaço e de movimento,
a pressão exterior que o impelia a entrar no corredor e ser
menina,
escrevia apenas que esse mal era uma metáfora. Foi quando a
copa da árvore, um plátano imponente, lhe começou a ensinar a descer da árvore,
a descer da cidade vegetal que era até à cidade humana,
igualmente iluminada pelo sol.
(...)
Em silêncio
e cega
deixo que me dispa da claridade penetrante,
da claridade nova,
da claridade sem falha,
da claridade densa,
da claridade pensada,
me torne um fragmento completo e sem resto
para que passem a clorofila e a sombra da árvore. Assim,
realizando eu própria um texto
e acompanhando-o,
constatei que a noite em breve se iria pôr,
deixando-me sem dia claro às portas da cidade.
Não havia percurso, apenas um decurso e vários sonhos
deitados em torno de uma mesa, sem que se visse quem dormia e estava a ser
sonhado.
Eram
animais que sonhavam, sonhos a preto e branco mas, mesmo assim sonhos.
Perguntaram se também eu os queria ter.
Como? Se a
voz me transformara num poema sem eu?
V
(...)
ia o poema por um caminho
e uma criança apanhou um balão que era o seu espaço mental.
Era eu? Era outra criança? O quarto onde eu vivia era, de fato, permeável ao
jardim, à floresta e aos aspectos técnicos da nostalgia. A nostalgia escolhe,
de preferência, os crepúsculos matinais, os instantes em que se conclui o
trabalho
e os passeios vespertinos por jardins que ainda não nos
conhecem.
A criança
tinha na mão um copo
Onde brilhavam reflexos e os raios deitados pela gravidade
da cabeça. Ria constantemente, e o seu riso era o percurso iluminativo do
poema. Eu não temia.
Queria
traçar uma vida que fosse minha
_não só, nem acompanhada_,
mas provando os frutos do mundo solar de que a minha ansiedade
já era a semente.
Ao crescer a melancolia, a sombra
de uma árvore submergiu-me; e eu não podia atribuir aquela sombra a uma árvore
implantada no meu quarto, tão pouco, a imaginações minhas. Tomou-se então
evidentemente, para mim, a existência de uma outra árvore entre o sentido
literal e o sentido interior, e é dela que sempre falarei a Hölderlin,
que talvez seja o elemento grego do carvalho,
com outra espécie de casca e de folha.
Essa
árvore, cuja existência supus, ou conjecturei,
e que meu olhar procurava projetava contra a abóbada celeste
existe, de fato. Mostrou-se a mim própria com a flor de sua
beleza e fecundidade. Indicou-me de onde provinha a sombra de minha melancolia.
Eu tinha de atravessar o corredor
sem ter de crescer por ele. Eu não teria como a maior parte
dos humanos. Crescera deitada de costas, e não a correr pelo corredor.
O rumorejar
incipiente da sua linguagem levou-me aos lodos do rio, ao sol, ao sistema
solar, à via látea, às infinitas galáxias; fiquei a saber que o dom poético é a
língua tocada pela expansão do universo,
que este caminha para o vivo,
e que o meu vivo é apenas uma forma dos vivos que, de fato,
existem;
nesse mesmo rio, nos seus lodos mais obscuros, nascera a
porta do quarto de Hölderlin, ou do Fiel do amor, à volta do qual eu fiz
sublinhar todo o vale da sua loucura
e mesmo quando o vale cair em cinzas verdes,
entre a casa que habitei e a casa das minhas pulsações,
haverá, como já sucedera à árvore, a casa que não obedece a
nenhuma posse
nem à das minhas pulsações, nem à do sentido literal.
Corri,
então, para lhe dizer que não entrasse por aquela porta
e reparou que
já havia entrado.
A jovem tem seios incipientes.
Vê-se que não está habituada a caminhar
totalmente desprovida das seduções da sua idade
Ultrapassou
a porta, e pôs essa ciência diante de si, como um monumento fálico. Não era
somente a união carnal e o múltiplo prazer dos sentidos que estavam na haste do
seu desejo,
era sobretudo, o apelo atrativo dos montes filosóficos.
O Fiel do
Amor compreendeu que ela queria vestir os seus seios com o uso da ciência e
convidou-a a vir, pelo calado da noite, ao seu quarto, no ramo Norte da casa. E
foi. O sopro que ela queria sobre ela era a brisa vegetal do amante.
(...)
soube, por ele, que a natureza era um comentário,
que a casa era a gramática daquela língua,
que aquela língua, de fato, existia, mas o seu uso exigia
uma
responsabilidade desmedida para o humano.
Ao voltar,
de novo, ao quarto do amante no jardim provavelmente tão antigo como a árvore,
reparou que estava integralmente coberto por temas de forças naturais e que a
natureza era para todos aqueles que ali brilhavam um texto profético
que
absorvia às golfadas o dom poético com que viera vestida.
Em lado algum via o corpo do amante.
Apenas o
poema crescia em todos os arbustos do jardim. Poderá ser uma metáfora, mas não
foi uma metáfora o que sentiu. A voz que viera acompanhar definhava, absorvida.
Todas as forças da natureza que o poema suscitava, comentava e ensinava a ser,
se coligavam para estrangular a voz. Entre a voz e o poema,
escolheria a voz.
A rapariga
recuou
e durante muito tempo, tive a nostalgia do poema
imaginando que, por imaturidade minha, o perdera para não
perder a voz sabendo, todavia, que, sem ele, a voz não teria companhia.
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