quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Maria Gabriela Llansol


Maria Gabriela Llansol



o começo de um livro é precioso


34



Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.


294

Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.


Onde vais drama-poesia?

(...)
Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe, o caminho caminha,
eu deslumbro-me quando o tempo suspende,
e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo. Como, de resto, é evidente, não tive intenção de conceber-me. Dei comigo já sentada no quarto de sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos. Ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação era exata para me tornar equilibrada, ou útil. No quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado. Descobri, que se, em vez de me concentrar na sombra do corredor, me deitasse de costas a olhar a mancha rutilante, o meu olhar poderia realizar o caminho inverso da luz e pousar no ramo mais alto da árvore e aprender com esta a produzir clorofila – a primeira matéria do poema.
            Essa postura, no entanto, tornou-me malcriada. Eu deveria crescer na direção do corredor, e estava a crescer na direção da árvore. Estive quase a dar ouvidos a essa voz humana que insistia que eu estava a crescer mal. E, de fato, era uma postura estranha. O meu corpo permanecia deitado,
no chão do quarto,
enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas. Com o tempo, como seria aquele corpo, separado da poesia, ou com esta apenas a brotar do seu olhar? Tanto mais que, lá do alto, o poema via tudo de cima e quase nada via do que se passava em baixo, à volta do seu corpo, não sentia a dor que este sentia,
a sua falta de espaço e de movimento,
a pressão exterior que o impelia a entrar no corredor e ser menina,

escrevia apenas que esse mal era uma metáfora. Foi quando a copa da árvore, um plátano imponente, lhe começou a ensinar a descer da árvore, a descer da cidade vegetal que era até à cidade humana,
igualmente iluminada pelo sol.
(...)
            Em silêncio e cega
deixo que me dispa da claridade penetrante,
da claridade nova,
da claridade sem falha,
da claridade densa,
da claridade pensada,
me torne um fragmento completo e sem resto
para que passem a clorofila e a sombra da árvore. Assim, realizando eu própria um texto

e acompanhando-o,
constatei que a noite em breve se iria pôr,
deixando-me sem dia claro às portas da cidade.
Não havia percurso, apenas um decurso e vários sonhos deitados em torno de uma mesa, sem que se visse quem dormia e estava a ser sonhado.
            Eram animais que sonhavam, sonhos a preto e branco mas, mesmo assim sonhos. Perguntaram se também eu os queria ter.
            Como? Se a voz me transformara num poema sem eu?

            V
(...)
ia o poema por um caminho
e uma criança apanhou um balão que era o seu espaço mental. Era eu? Era outra criança? O quarto onde eu vivia era, de fato, permeável ao jardim, à floresta e aos aspectos técnicos da nostalgia. A nostalgia escolhe, de preferência, os crepúsculos matinais, os instantes em que se conclui o trabalho
e os passeios vespertinos por jardins que ainda não nos conhecem.

            A criança tinha na mão um copo
Onde brilhavam reflexos e os raios deitados pela gravidade da cabeça. Ria constantemente, e o seu riso era o percurso iluminativo do poema. Eu não temia.
            Queria traçar uma vida que fosse minha
­­_não só, nem acompanhada_,
mas provando os frutos do mundo solar de que a minha ansiedade já era a semente.

Ao crescer a melancolia, a sombra de uma árvore submergiu-me; e eu não podia atribuir aquela sombra a uma árvore implantada no meu quarto, tão pouco, a imaginações minhas. Tomou-se então evidentemente, para mim, a existência de uma outra árvore entre o sentido literal e o sentido interior, e é dela que sempre falarei a Hölderlin,
que talvez seja o elemento grego do carvalho,
com outra espécie de casca e de folha.

            Essa árvore, cuja existência supus, ou conjecturei,
e que meu olhar procurava projetava contra a abóbada celeste
existe, de fato. Mostrou-se a mim própria com a flor de sua beleza e fecundidade. Indicou-me de onde provinha a sombra de minha melancolia. Eu tinha de atravessar o corredor
sem ter de crescer por ele. Eu não teria como a maior parte dos humanos. Crescera deitada de costas, e não a correr pelo corredor.
            O rumorejar incipiente da sua linguagem levou-me aos lodos do rio, ao sol, ao sistema solar, à via látea, às infinitas galáxias; fiquei a saber que o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo,
que este caminha para o vivo,
e que o meu vivo é apenas uma forma dos vivos que, de fato, existem;

nesse mesmo rio, nos seus lodos mais obscuros, nascera a porta do quarto de Hölderlin, ou do Fiel do amor, à volta do qual eu fiz sublinhar todo o vale da sua loucura
e mesmo quando o vale cair em cinzas verdes,
entre a casa que habitei e a casa das minhas pulsações,
haverá, como já sucedera à árvore, a casa que não obedece a nenhuma posse
nem à das minhas pulsações, nem à do sentido literal.

            Corri, então, para lhe dizer que não entrasse por aquela porta
e reparou que
já havia entrado.
A jovem tem seios incipientes.
Vê-se que não está habituada a caminhar
totalmente desprovida das seduções da sua idade

            Ultrapassou a porta, e pôs essa ciência diante de si, como um monumento fálico. Não era somente a união carnal e o múltiplo prazer dos sentidos que estavam na haste do seu desejo,
era sobretudo, o apelo atrativo dos montes filosóficos.
            O Fiel do Amor compreendeu que ela queria vestir os seus seios com o uso da ciência e convidou-a a vir, pelo calado da noite, ao seu quarto, no ramo Norte da casa. E foi. O sopro que ela queria sobre ela era a brisa vegetal do amante.
(...)
soube, por ele, que a natureza era um comentário,
que a casa era a gramática daquela língua,
que aquela língua, de fato, existia, mas o seu uso exigia uma
responsabilidade desmedida para o humano.

            Ao voltar, de novo, ao quarto do amante no jardim provavelmente tão antigo como a árvore, reparou que estava integralmente coberto por temas de forças naturais e que a natureza era para todos aqueles que ali brilhavam um texto profético
que
absorvia às golfadas o dom poético com que viera vestida.
Em lado algum via o corpo do amante.
            Apenas o poema crescia em todos os arbustos do jardim. Poderá ser uma metáfora, mas não foi uma metáfora o que sentiu. A voz que viera acompanhar definhava, absorvida. Todas as forças da natureza que o poema suscitava, comentava e ensinava a ser,
se coligavam para estrangular a voz. Entre a voz e o poema, escolheria a voz.

            A rapariga recuou
e durante muito tempo, tive a nostalgia do poema
imaginando que, por imaturidade minha, o perdera para não perder a voz sabendo, todavia, que, sem ele, a voz não teria companhia.





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