Um sopro de vida , Clarice
Lispector
Isto não é um lamento, é um
grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse
para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma
espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos.
(...)
Eu sempre fui e
imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma
é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço
vênia para passar.
(...)
Nunca a vida foi tão atual
como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da
matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um
verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O
tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas,
mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O
tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja
engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar
depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto.
Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia
de imobilidade eterna.
Na eternidade não existe o
tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide.
De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao
mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um
hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e
extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O
aguilhão da abelha do dia florescente de hoje.
(...)
O que é que se torna fato?
Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher
as páginas com informações sobre os “fatos”? Devo imaginar uma história ou dou
largas à inspiração caótica?
(...)
Será horrível demais querer
se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não
existir mais, a não reinvidicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é isso que luto por
alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.
Tenho medo de escrever. È
tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo
não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar.
Para escrever tenho que me
colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio
terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da
cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? Talvez as
diga. Escrever é uma pedra lançada no poço mais fundo.
(...)
Escrevo quase que
totalmente liberto de meu corpo. È como se este estivesse em levitação. Meu
espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade
íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou
livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? Não há uma ruga no
meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a
graça.
(...)
“Escrever” existe por si
mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o
inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê – é por fatalidade de
voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?
(...)
Este é um livro silencioso.
E fala, fala baixo.
Este é um livro fresco –
recém-saído do nada.
(...)
Se alguém me ler será por
conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do
tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever.
Há tantos anos me perdi de
vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir
me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão
perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.
(...)
Cada novo livro é uma
viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados –
a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma
inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo
que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor
possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura.
È Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. (...) a
loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas limitações são a
matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo. (...) vou
definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo
para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
(...)
Cada mudança, cada projeto
novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha
palavra tem um coração onde circula sangue.
Tudo o que aqui escrevo é
forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho
enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é
obscura.
(...)
Pensar é a concretização,
materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia,
pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é
racional. É quase virgem.
Às vezes a sensação de
pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se
liberta depois de pensar – com palavras. (...) sou sério e honesto e se não
digo a verdade é porque esta é proibida. Eu não aplico o proibido mas eu o liberto. As coisas
obedecem ao sopro vital. Nasce-se para fruir. E fruir já é nascer. Enquanto
fetos fruímos do conforto total do ventre materno.
(...)
Viver é mágico e
inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte.
(...) Deus não deve ser
pensado jamais senão Ele foge ou eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido.
Então ele age.
Pergunto-me: por que Deus
pede tanto que seja amado por nós? Resposta possível: porque assim nós amamos a
nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão.
Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.
O resultado disso tudo é
que vou ter que criar um personagem – mais ou menos como fazem os novelistas –,
e através da criação dele conhecer. Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a
mesma que existe em cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se?
senão o de criar as próprias realidades? essa civilização apenas guiada pelo
sonho. Cada invenção minha soa-me como uma prece leiga – tal é a intensidade de
sentir, escrevo para aprender. Escolhi a mim e ao meu personagem (...) para que
talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. Vida
não tem adjetivo. É uma mistura em cadinho estranho mas que me dá, em última
análise, em respirar. E
ás vezes arfar. E ás vezes mal poder respirar. É. Mas às vezes há também o
profundo hausto de ar que atinge o fino frio do espírito, preso ao corpo por
enquanto.
Eu queria iniciar uma
experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim,
apenas acontecia. Daí minha invenção de um personagem. Também quero quebrar,
além do enigma do personagem, o enigma das coisas.
Este ao que suponho será um
livro feito aparentemente por destroços de livro. (...) Eu poderia pegar cada
vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre
é às vezes que está a essência da coisa.
(...)são cortes laterais de
uma realidade que se me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem
dizer que eu trabalho em ruínas.
Eu sei que este livro não é
fácil, mas á fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério.
Ao escrevê-lo não me
conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é
auto-biográfico, vocês não sabem nada de mim. (...) O que me importa são
instantâneos fotográficos das sensações – pensadas, e não a pose imóvel dos que
esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafo de rua.
(...) Não ler o que escrevo
como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos
solilóquios do escuro irracional.
Se este livro vier jamais a
sair, que dele se afastem os profanos. Pois escrever é coisa sagrada onde os
infiéis não tem entrada. Estar fazendo de propósito um livro bem ruim para
afastar os profanos que querem “gostar”. Mas um pequeno grupo verá que esse
“gostar” é superficial e entrarão adentro do que verdadeiramente escrevo, e que
não é “ruim”, nem é “bom”.
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