terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Um sopro de vida , Clarice Lispector


Um sopro de vida ,  Clarice Lispector


Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos.      
(...)
Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar.
(...)
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna.
Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão da abelha do dia florescente de hoje.
(...)
O que é que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os “fatos”? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica?
(...)
Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reinvidicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.
Tenho medo de escrever. È tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar.
Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? Talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço mais fundo.
(...)
Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. È como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? Não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.
(...)
“Escrever” existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê – é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?
(...)
Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo.
Este é um livro fresco – recém-saído do nada.
(...)
Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever.
Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.
(...)
Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados – a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. È Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. (...) a loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo. (...) vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
(...)
Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.
Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura.
(...)
Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem.
Às vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois de pensar – com palavras. (...) sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proibida. Eu não aplico  o proibido mas eu o liberto. As coisas obedecem ao sopro vital. Nasce-se para fruir. E fruir já é nascer. Enquanto fetos fruímos do conforto total do ventre materno.
(...)
Viver é mágico e inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte.
(...) Deus não deve ser pensado jamais senão Ele foge ou eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido. Então ele age.
Pergunto-me: por que Deus pede tanto que seja amado por nós? Resposta possível: porque assim nós amamos a nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão. Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.
O resultado disso tudo é que vou ter que criar um personagem – mais ou menos como fazem os novelistas –, e através da criação dele conhecer. Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias realidades? essa civilização apenas guiada pelo sonho. Cada invenção minha soa-me como uma prece leiga – tal é a intensidade de sentir, escrevo para aprender. Escolhi a mim e ao meu personagem (...) para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. Vida não tem adjetivo. É uma mistura em cadinho estranho mas que me dá, em última análise, em respirar. E ás vezes arfar. E ás vezes mal poder respirar. É. Mas às vezes há também o profundo hausto de ar que atinge o fino frio do espírito, preso ao corpo por enquanto.
Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecia. Daí minha invenção de um personagem. Também quero quebrar, além do enigma do personagem, o enigma das coisas.
Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. (...) Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa.
(...)são cortes laterais de uma realidade que se me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.
Eu sei que este livro não é fácil, mas á fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério.
Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é auto-biográfico, vocês não sabem nada de mim. (...) O que me importa são instantâneos fotográficos das sensações – pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafo de rua.
(...) Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional.
Se este livro vier jamais a sair, que dele se afastem os profanos. Pois escrever é coisa sagrada onde os infiéis não tem entrada. Estar fazendo de propósito um livro bem ruim para afastar os profanos que querem “gostar”. Mas um pequeno grupo verá que esse “gostar” é superficial e entrarão adentro do que verdadeiramente escrevo, e que não é “ruim”, nem é “bom”.



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