Maurice Blanchot, "O encontro do imaginário",
tradução Leyla Perrone-Moisés
“As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira
que não satisfazia, que apenas dava a entender a em que direção se abriam as
verdadeiras fontes e a verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus
cantos imperfeitos, que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o
navegante em direção àquele espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o
enganavam, portanto, levavam-no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido o
objetivo, o que acontecia? O que era esse lugar? Era aquele onde só se podia
desaparecer, porque a música, naquela região de fonte e origem, tinha também
desaparecido, mais completamente do que em qualquer outro lugar do mundo; mar
onde, com orelhas tapadas, soçobravam os vivos e onde as Sereias, como prova de
sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas mesmas.
De que natureza era o canto das Sereias? Em que consistia seu
defeito? Porque esse defeito o tornava tão poderoso? Alguns responderam: era um
canto inumano – um ruído natural, sem dúvida (existem outros?), mas à margem da
natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito baixo e despertando, nele,
o prazer extremo de cair, que não pode ser satisfeito nas condições normais da
vida. Mas, diziam outros, mais estranho é o encantamento: ele apenas reproduzia
o canto habitual dos homens, e porque as Sereias, que eram apenas animais,
lindas em razão do reflexo da beleza feminina, podiam cantar como cantam os
homens, tornavam o canto tão insólito que faziam nascer, naquele que o ouvia, a
suspeita da inumanidade de todo canto humano. Teria sido então por desespero
que morreram os homens apaixonados por seu próprio canto? Por um desespero
muito próximo do deslumbramento. Havia algo de maravilhoso naquele canto real,
canto comum, secreto, canto simples e cotidiano, que fazia reconhecer de
repente, cantado irrealmente por potências estranhas e, por assim dizer,
imaginárias, o canto do abismo que, uma vez ouvido, abria em cada fala uma
voragem e convidava fortemente a nela desaparecer.
Não devemos esquecer que esse canto se destinava a
navegadores, homens do risco e do movimento ousado, e era também ele uma
navegação: era uma distância, e o que revelava era a possibilidade de percorrer
essa distância, de fazer, do canto, o movimento em direção ao canto, e desse
movimento, a expressão do maior desejo. Estranha navegação, mas em busca de que
objetivo? Sempre foi possível pensar que todos aqueles que dele se aproximaram
apenas chegaram perto, e morreram por impaciência, por haver prematuramente
afirmado: é aqui; aqui lançarei âncora. Segundo outros, era, pelo contrário,
tarde demais: o objetivo havia sido sempre ultrapassado; o encantamento, por
uma promessa enigmática, expunha os homens a serem infiéis a eles mesmos, a seu
canto humano e até à essência do canto, despertando a esperança e o desejo de
um além maravilhoso, e esse além só representava um deserto, como se a
região-mãe da música fosse o único lugar totalmente privado de música, um lugar
de aridez e secura onde o silêncio, como o ruído, barrasse, naquele que havia
tido aquela disposição, toda via de acesso ao canto. Havia pois um princípio
malévolo naquele convite às profundezas? Seriam Sereias, como habitualmente nos
fazem crer, apenas vozes falsas que não deviam ser ouvidas, o engano e a
sedução aos quais somente resistiam os seres desleais e astutos?
Houve sempre, entre os homens, um esforço pouco
nobre para desacreditar as Sereias, acusando-as simplesmente de mentira:
mentirosas quando cantavam, enganadoras quando suspiravam, fictícias quando
eram tocadas; em suma, inexistentes, de uma inexistência pueril que o bom senso
de Ulisses é suficiente para exterminar.
É verdade, Ulisses as venceu, mas de que maneira?
Ulisses, a teimosia e a prudência de Ulisses, a perfídia que lhe permitiu gozar
do espetáculo das Sereias sem correr risco e sem aceitar as conseqüências,
aquele gozo covarde, medíocre tranqüilo e comedido, como convém a um grego da
decadência, que nunca mereceu ser o herói da Ilíada, aquela covardia
feliz e segura, aliás fundada num privilégio que o coloca fora da condição
comum, já que os outros não tiveram direito à felicidade da elite, mas somente
ao prazer de ver seu chefe se contorcer de modo ridículo, com caretas de êxtase
no vazio, direito também de dominar seu patrão (nisso consiste, sem dúvida, a
lição que ouviam, o verdadeiro canto das Sereias para eles): a atitude de
Ulisses, a espantosa surdez de quem é surdo porque ouve, bastou para comunicar
às sereias um desespero até então reservado aos homens, e para fazer delas, por
desespero, belas moças reais, uma única vez reais e dignas de suas promessas,
capazes pois de desaparecer na verdade e na profundeza de seu canto.
Vencidas as sereias, pelo poder da técnica, que
pretenderá sempre jogar sem perigo com as potências irreais (inspiradas),
Ulisses não saiu porém ileso. Elas o atraíram para onde ele não queria cair
e, escondidas no seio da Odisséia,
que foi seu túmulo, elas o empenharam, ele e muitos outros, naquela navegação
feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto não mais imediato mas contado,
assim tornado aparentemente inofensivo, ode transformada em episódio.”
MARAVILHOSO!
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