quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

“A POÉTICA DO JOGO”, Claudio Daniel


“A POÉTICA DO JOGO”, Claudio Daniel
A palavra jogo vem do latim jocu, que significa "gracejo" ou "zombaria", conforme a definição do dicionário. O termo latino, por sua vez, é posterior a ludus, que abrangia "os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar," segundo Johan Huizinga, em seu livro Homo ludens - O jogo como elemento da cultura. A palavra teria ainda o sentido de " ‘simular' ou de ‘tomar o aspecto de'. Os compostos alludo, colludo, illudo apontam todos na direção do irreal, do ilusório" (idem). A idéia de ilusão, aqui, não indica falsidade ou inexistência, mas brincadeira, fingimento, imaginação. Conforme Huizinga, "O jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa ‘imaginação' da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)".
A relação entre esse conceito e o da criação poética, e em especial com a metáfora, é evidente: "Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da natureza" (idem). Esse universo lúdico, similar ao sonho e ao mito, em que, segundo Huizinga, "há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade", é no entanto um sistema organizado, uma estrutura, em que há regras claras e precisas para o seu funcionamento. A primeira definição de jogo, no verbete de dicionário, diz justamente o seguinte: "Atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que definem perda ou ganho". A existência de regras é essencial para o funcionamento do jogo, pois elas, segundo Huizinga, "determinam aquilo que ‘vale' dentro do mundo temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão". Assim, no jogo de xadrez, o bispo sempre se moverá nas diagonais, e o cavalo avançará na forma de um "L" - não podem intercambiar funções; no jogo de cartas, é atribuído um valor a cada carta, e a cada seqüência de naipes dispostos na mesa.
O jogo é uma estrutura móvel e combinatória em que todas as peças ou movimentos dos jogadores têm valor, isoladamente e em conjunto. Por isso mesmo, reina no universo do jogo "uma ordem específica e absoluta. (...) Ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta", ainda conforme Huizinga, afirmação que podemos comparar a outra definição apresentada no dicionário no verbete dedicado ao jogo: "conjugação harmoniosa de peças mecânicas com o fim de movimentar um maquinismo".
A idéia do jogo como um sistema com regras específicas é muito próxima aos conceitos e procedimentos da vanguarda relativos à estrutura da obra poética, e Huizinga observa que devido à "afinidade profunda entre a ordem e o jogo", este último estaria, "em larga medida, ligado ao domínio do estético". E acrescenta: "Há nele uma tendência para o belo. Talvez este esforço estético seja idêntico àquele impulso de criar formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos". A afinidade entre a poesia e o jogo se manifesta "na própria estrutura da imaginação criadora. Na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico". Esta intervenção pode ocorrer "seja no mito ou na lírica, no drama ou na epopéia, nas lendas de um passado remoto ou num romance moderno", pois "a finalidade do escritor, consciente ou inconsciente, é criar uma tensão que ‘encante' o leitor e o mantenha ‘enfeitiçado' " (idem). Podemos verificar a manifestação do espírito lúdico na poesia, segundo Huizinga, na "ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases". Affonso Ávila, em concordância com Huizinga, considera, no livro O lúdico e as projeções do mundo barroco, que "tais recursos de adensamento da expressão, manipulados pela habilidade técnica do escritor, infletem não raro para a livre associação conotativa, inscrevendo-se com isso a linguagem numa faixa de extrema abertura para o jogo".
Uma forma de manifestação lúdica na poesia apontada por Huizinga é a construção de enigmas: "O que a linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma". Essa forma poética está presente nos aforismos filosóficos de Heráclito, nos hinos do Rig-Veda, nos poemas sapienciais do Tao Te King, nas metáforas do tipo kenning, utilizadas na poesia escandinava (por exemplo, "água da espada" para designar o sangue; "tempestade de espadas", para dizer batalha, ou "alimento de corvos" para cadáver), no trobar clus dos trovadores provençais, como Arnaut Daniel, nas parábolas bíblicas e na poesia do barroco português, estudada por Ana Hatherly em livros como A Experiência do Prodígio e A Casa das Musas. Nesta última obra, encontramos a seguinte definição de enigma, formulada pela autora portuguesa: "O enigma é uma das formas poéticas então correntes que ilustram claramente como o prazer intelectual se podia identificar com o prazer do jogo, entendido como uma derivação do prazer de saber, do prazer de penetrar o mistério".
Nesta forma de composição poética, que corresponde ao sentido do jogo como "brincadeira, passatempo, divertimento", conforme o dicionário, e ainda à fórmula horaciana de ensinar e deleitar, temos uma origem mais profunda, como relata Ana Hatherly: uma origem "no oculto, no encoberto que se furta ao fácil acesso", sendo por isso mesmo "um aliciante para o gosto da época, nutrido pelos mistérios da Fé e da Natureza", num tempo em que, na cultura européia, "a ciência está grandemente ligada à magia, ao saber que necessita de iniciação". A tradição do enigma, que gradualmente abandonou o caráter espiritual e se secularizou, tornando-se um divertimento palaciano, chegou a nossos dias como recurso de invenção poética, conforme registra Huizinga: "As escolas líricas modernas, que se movem e residem em domínios geralmente inacessíveis e gostam de envolver o sentido numa palavra enigmática, permaneceram, portanto, fiéis à essência da sua arte". Despido do caráter metafísico original e da função de passatempo mundano, o enigma foi incorporado na criação poética de autores como Mallarmé, Valéry, Lezama Lima, Paul Celan.
Na poesia lírica de Ana Hatherly, desde suas primeiras obras, como o livro A Dama e o Cavaleiro (1960), encontramos o uso livre deste recurso, por exemplo neste poema composto de adivinhas que se chama, justamente, Os Enigmas: "São barcos sem quilha / E passageiro o leme. / O mastro submerso / Na água que voa / E velas, mil velas / Caminham / Na palma das praias / Que crescem com as ondas". Nesta peça, dividida em três seções, o mistério é construído pela associação inusitada de imagens, que altera o caráter e a função dos elementos, na forma de bizarras metáforas; em outros versos, surgem definições ainda mais estranhas: "O sol é um coral de síntese / Intacta anêmona / Translúcida, fria / E o ventre das conchas / Que geram flores / Ondula na sombra / Das sombras da sombra" (idem). Na terceira seção do poema, o vínculo formal com os enigmas é ainda mais explicitada, nos versos "É um peso / Um presságio / Que atinge os arcanos / Secretas cisternas / Dos encantamentos. / As cifras ocultas / Na penugem branca / Ficaram perdidas / Ficaram suspensas / Negaram a esperança / O momento supremo: / Mataram o grifo". A referência ao grifo, animal fantástico com cabeça e asas de águia e corpo de leão, é significativa, desde a imagem alegórica até a própria definição do vocábulo, que também quer dizer, conforme o dicionário, "questão difícil, embaraçosa, enigma", e ainda "elocução ambígua". A morte do grifo, no poema é justamente o mistério por decifrar: trata-se de uma representação simbólica do silêncio ou exílio imposto às artes do barroco por uma concepção mais clássica da poesia, avessa ao furor estético da "pérola irregular". As metáforas enigmáticas estão presentes em outras obras líricas da autora, como Eros Frenético (1968), O Cisne Intacto (1983), Rilkeana (1999) e mesmo nos poemas em prosa das Tisanas (2006), onde encontramos, por exemplo, as afirmações de que "O mistério supremo é a claridade" (Tisana 121) e "a letra no momento do salto é uma abertura de possibilidades" (Tisana 122).
O enigma, desde suas origens, é uma forma híbrida, capaz de se associar a outras formas. Essa hibridização, freqüente na poesia barroca portuguesa, pode ser encontrada, por exemplo, no poema Aplauzos Acadêmicos em honra do Conde de Vila Flor, incluído na coletânea organizada por D. António Álvares da Cunha e comentado por Ana Hatherly em A Casa das Musas. O poema, que se assemelha a uma carta celeste, com o sol no centro de uma série de círculos concêntricos, combina as formas do enigma, do hieróglifo, do labirinto e do anagrama com o propósito de "acumular dificuldades" para assim não apenas demonstrar a "superior capacidade do autor", mas também a "correspondente virtuosidade do leitor", diz a autora portuguesa.  Esta divisa nos parece adequada como emblema para sintetizar a obra da própria Ana Hatherly, cultora de insólitos labirintos.
"O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude", segundo Huizinga. Por estar além das dicotomias habituais da ética e da metafísica e assumir "acentuados elementos de beleza", o jogo está próximo da estética. Estas formulações guardam um forte paralelo com o texto inicial do romance O Mestre, de Ana Hatherly: "A Mentira é recriação de uma Verdade. O mentiroso cria e recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é tênue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas tênues e delicadas. Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo". Nesta passagem programática, além de relativizar as noções de verdadeiro e falso - tema aliás abordado na Tisana 298 -, a autora brinca com as diferentes acepções da palavra jogo, entre elas a de "recreio" (que no dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda aparece como "brinquedo", "passatempo" e "divertimento"), num tom irônico e ardiloso que aponta para outras definições de jogo, como "escárnio, ludíbrio" e "manha, astúcia, ardil". 
A palavra "recrio" também é estratégica, pois indica o engenho inventivo da autora, que se propôs a escrever um romance que em nada se parece com a tradição clássica do gênero, situado fora das dimensões narrativas tradicionais e com peripécias que se resumem a breves diálogos e poucas ações. O jogo entre recriação e recreio tramado nesta obra "rompe com as fronteiras estabelecidas entre a narrativa e a poesia", como diz Nadiá Paulo Ferreira, inserindo-se, portanto, na mesma zona híbrida e miscigenada de Anacrusa e das Tisanas: não se trata de prosa poética ou romance em versos, mas sim de texto inventivo, experimental, que despreza os limites entre os gêneros.
Conforme observou Maria Alzira Seixo na segunda edição portuguesa de O Mestre, há nessa obra "um grande afastamento em relação à definição das estruturas romanescas consideradas normais (tempo, personagens, espaço, intriga)", o que diferencia este livro da "tradição do romance oitocentista que se prolonga (...) pelas primeiras décadas do século XX afora, tanto na Presença quanto no Neo-Realismo", como escreveu José Carlos Barcello na contracapa da edição brasileira. "Ana Hatherly não escreveu este livro como se Virgínia Woolf e James Joyce nunca tivessem existido. Escreveu a partir do seu legado, sem deixar de se associar à efervescência experimental dos anos 60", segundo Silvina Rodriges Lopes, em seu prefácio à terceira edição portuguesa do romance. Ao contrário das narrativas ficcionais de cunho linear, em O Mestre "as personagens não têm nome próprio. As palavras que têm como função substituir o nome próprio apontam para o lugar que as personagens ocupam em uma história de amor", diz Nadiá Paulo Ferreira. Em vez de nomes, o romance traz epítetos para os personagens: assim, temos "uma Discípula que procura obstinadamente um Mestre para amar e ser amada, o que lhe permitiria (...) 'atingir a Alegria' ", e um Mestre "cuja principal característica é o riso". "Mestre e discípulo são conceitos fundamentais envolvidos no processo pedagógico que visa a transmissão e renovação de conhecimento", escreve Silvina Rodrigues Lopes. "Os Mestres vêm do Oriente", prossegue a autora, "confundindo-se com os enigmas das suas falas; são, como Sócrates, exemplares e irônicos. Por um movimento de abstractização, o Mestre torna-se todos os mestres", assim como "a Discípula, que é todos os discípulos". Ela "representa a capacidade de pergunta e de questionação, a perseguição de uma finalidade que aqui se chama amor ou ciência", conforme Maria Alzira Seixo. Temos aqui tipos dramáticos, portanto, como no teatro vicentino: o Mestre, com um perfil de monge zen ou sábio taoísta, que prefere o riso, o silêncio ou sentenças enigmáticas a um ensinamento direto da verdade (assim como nos koans budistas, parodiados nas Tisanas); e uma Discípula ávida pelo saber, que para ela é o mesmo que o amor e a alegria (numa palavra: a plenitude).
Este livro desconcertante, narrado ora na terceira pessoa, ora na primeira (como as Tisanas), é, paradoxalmente, um ensaio sobre o amor, ou ainda sobre a impossibilidade do amor, um dos temas básicos de Ana Hatherly, sintetizado na Tisana 285: "O verdadeiro amor é um ato indisponível". Conforme Nadiá Paulo Ferreira, "O Mestre se insere de forma bastante original na tradição do mito de amor das literaturas em língua portuguesa", embora sem os "artifícios românticos que velam o amor impossível". A originalidade da autora, diz Nadiá Paulo Ferreira, está na "conjugação entre amor e saber, sendo que este último se torna condição para a descoberta do amor e sua verdade". O vínculo pedagógico e de sedução entre Mestre e Discípula é justamente o eixo narrativo do livro, cuja estrutura é similar à de um jogo.



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