segunda-feira, 28 de maio de 2012

La Dame à la Licorne


LA DAME Á LA LICORNE


                                                           Reaprender o mundo
                                                                                       Em prisma novo
                                                    Pequena bátega de sol a resolver-se
                                                                                                    Em cisne,
                                                            Sereia harmonizando o universo
                                       ANA LUÍSA AMARAL, A gênese do amor





Podia ter-me guiado os passos para o café
assim me haviam dito
de ser poeta em Paris
ter um bloco de notas
de capa preta
um lápis e as palavras soltas
boina vermelha
as botas pretas um frio atento
a noite e as suas sombras
e estar ali ao abandono
do dia contra a noite
alinhar as palavras esquecidas
uma a uma as mais bonitas.
Podíamos ter trocado os silêncios
ou as histórias do sul e do norte
à vez entre sorrisos
e o ruído da rua
mas assim é Paris
Apanha-nos pelas veias
E foi preciso reaprender o gosto
o cheiro o toque os olhos
os sentidos todos
os fios de seda e lã
diante da senhora e do unicórnio azul
mon seul désir.

A mulher de palavras antigas
Moveu as mãos para amarrar o sol
Deixou na praia as marcas dos pés
Inventou um texto
Para cruzar as fibras.

Ardem de novo os lírios
No silêncio inquieto das dunas
Os rios de seiva engordam
A árvore dos velhos pelas raízes

A mulher das palavras antigas
Enche de água nova
as panelas
onde os espíritos se reconhecem
e matam a sede dos dias e das noites

A guardiã do fogo começa a vida
Pelos sete caminhos
Lê as palavras iguais
E começa de novo

A memória do tempo
Está inscrita nos seus gestos pequenos
Que tornam o avesso da terra
Tão perfeito como a ilha
Que se move lenta
Por dentro do cerco.

Assim se rasgam os dias
À força de vozes
Pequenas mulheres em fila
Recolhendo os peixes

Assim se inscrevem no mapa da noite
Os gritos das mulheres
O choro das crianças.




PAULA TAVARES
In COMO VEIAS FINAS NA TERRA
Lisboa: Caminho, 2010.

4 comentários:

  1. ação: sair daqui separando os pingos e os is e todos os verbos e nomes e expressões em que não mais coubessem situações sutis - entender que a gris paisagem escondeu atrás de si zilhões de ses e ardis
    que nada mais foram do que possibilidades não realizadas em outro sítio
    todas elas cuidadosamente riscadas em giz em um caderno de notas, lorotas e fatos que foram só suspeita mas que constituiram o mundo possivel, agora aberto à colheita.
    reação: o olho vê a paris enquanto os dedos no café picotam todas formas e narrativas e páginas e capas duras, para produzir de cada folha e de cada rabisco a linha mínima e pura, tudo picotado insistente e doentemente, assistido somente pelo ouvido. tecer, destecer e retecer o agasalho para um frio de alma instalado e inspirado pelo nariz, agasalho grisalho como a cor do galho caído e congelado pelo que foi orvalho e que agora é o meu giz, gis possivel para um redesenho sobre a nova pele.
    que volta.

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  2. Lindo relato de tecelã, Claudia! Não sabia que já tinha ido à Paris, e feito tantos registros, em todos os sentidos, ouvidos, gustativos, tatilibidos...de seus desenhos sensoriais, seus cadernos que aguardo ansioso, temeroso, como a ouvir o canto da sereia em meus ouvidos invictos. adorei seu comentário, quero mais!

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  3. esse ano foi um ano atípico, Kirkus. Nunca tinha ido à europa, minha experiência no exterior se reduzia a dois meses vivendo o cotidiano no peru. mas entre fevereiro e abril, fui 2 vezes à europa, fiquei 15 dias em paris em casa de amigos, em férias, e logo depois fui a um congresso em lisboa. muita informação para minha cabeça de maria gotinha, que vai sendo processada em conta-gotas. meu desenho desapareceu. uma de minhas metas é reconquistá-lo, mas em um novo desafio poético que tem sido o desejo da invisibilidade. abraços claudicantes, c.

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