terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"A experiência mágica de Henri Michaux". Maurice Blanchot

"A experiência mágica de Henri Michaux", 17 agosto 1944
Maurice Blanchot

Da obra tão diversa, tão rara e tão importante de Henri Michaux,
é possível reter aspectos bastante diferentes. Mas ele acaba
de publicar, quase ao mesmo tempo, uma nova coletânea, com o
nome de Exorcismos (Exorcismes. Paris: Robert-J.
Godet, 1943.), e uma seleção de páginas escolhidas de suas
obras anteriores, que, por seu título e sua direção, designa o aspecto
de si mesmo de que o autor quer nos fazer tomar consciência.
O Espaço do dentro (L’Espace du dedans. Paris:
Gallimard, 1944.) é também uma coletânea de exorcismos.
Trata-se de uma sequência de quadros que evoca uma experiência
mágica. Pinturas, contos, poemas, encantações, essa experiência ali
se exprime por meios literários extraordinariamente eficazes, mas
que não buscam um fim literário.
A palavra magia é frequente na obra de Henri Michaux. Ele
chamou uma de suas coletâneas de No país da magia (Au pays de la magie. Paris:
Gallimard, 1941.), e várias de
suas páginas também levam este nome. Mas se toda uma parte de
sua obra aparece como o esforço de uma consciência mágica, como
o engendramento de uma realidade mágica, é preciso imediatamente
notar que o termo por ele empregado não tem o sentido
vago, gasto, com o qual o uso habitualmente se contenta. Magia é
coisa diferente de um poder de encantamento, e põe à disposição
do homem recursos extraordinários.
“Escrevo como posso [diz Michaux] a primeira vez aconteceu
depois de uma aposta, ou melhor, de uma fúria. Fiquei muito
surpreso com o resultado da explosão, que foi chamado de poema.
Isso se repetiu. Ainda não me habituei. Escrevo com arrebatamento
e para mim...” Uma grande parte de sua obra é marcada por essa
presença de uma emoção violenta. A fúria lhe dá sua forma de
perpétua agressão, de luta ardilosa e impulsiva, de reação de defesa,
contra um objeto ele próprio dotado de malvadez, agressivo, desarrazoadamente
cruel (“Na verdade, anota ele ao descrever os Movimentos
do ser interior, aquele que não conhece a fúria nada sabe.
Não conhece o imediato”) (Mouvements de l’être intérieur.
Paris: Gallimard,1938.). O que a fúria construiu, a angústia ou
o medo destrói. A construção é vertiginosa, instantânea, uma espécie
de catarata, um acesso tão poderoso que num momento triunfa
sobre a nulidade de seus próprios meios. (Um dos temas essenciais
de Michaux é o tema do construtor. O construtor parece absurdo
porque constrói com qualquer coisa; mas ele pode, justamente,
construir com qualquer coisa: é senhor de um mundo que se ri da
sabedoria expediente, é capaz daquilo que sente: “Construirei para
vocês uma cidade com trapos! Construirei para vocês sem projeto
e sem cimento um edifício que vocês não destruirão...”) Mas
a angústia desfaz lentamente, pacientemente, arruína por antecipação,
anula, antes que ele venha a existir, o edifício da espontaneidade
e da tempestade. Ela é a noite dos estorvos, projeta indefinidamente
a desordem e o desequilíbrio. Tudo está sempre por ser
refeito, tudo desaparece, e a própria morte, como na visão hindu,
não passa da promessa de um recomeço sem termo. (“Neste universo,
há poucos sorrisos. Quem nele se move faz uma infinidade
de encontros que o ferem. No entanto, não se morre nele. Se se
morre, tudo recomeça.”)
É por ser o produto direto da emoção que o mundo de Michaux
é um mundo mágico. Na emoção, tentamos abrir para nós
um caminho para um mundo que não seja mais regulado por relações
razoáveis e inteiramente determinadas, mas pela magia. A fúria,
por exemplo, é um comportamento mágico que tende a abater
com um só golpe um ser ou um objeto que não temos tempo de
combater realmente. O mundo real é difícil demais, lento demais.
A fúria não quer esperar, não tem a paciência de seguir as vias sinuosas
que a ela se oferecem para uma ação verdadeira. Ela apagará,
portanto, todos os dados práticos, e substituirá a ação concreta
da vingança por uma ação simbólica, uma ação mágica por gestos,
ameaças, palavras nas quais, fora do tempo, ela se realizará em todo
o furor de seu desejo. Assim começam para o homem novas relações
com o mundo. Mas é apenas um começo. Pois assim que as
coisas perdem sua estrutura racional e definida, elas se apoderam da
consciência que as suscitou e forçam-na a uma catividade extenuante.
A fúria, para se desembaraçar do mundo odioso que a afronta,
se precipita num mundo de embaraços que ela jamais consegue
superar. Terríveis são os objetos de Michaux, de uma potência de
agressão sem igual, de uma ferocidade maldosa inesgotável. Pois ele
próprio, por sua fúria, os constituiu em um mundo de hostilidade,
em uma muralha, sempre a ruir e sempre a renascer, de ferocidade
e de malícia. E não se trata de uma projeção imaginária. O mundo
da emoção é exatamente assim, retraindo-se sobre a consciência,
engolindo-a pouco a pouco, encerrando-a em si mesma, dando-lhe
a certeza de que ela está para sempre cativa e que, assim prisioneira,
só pode justamente recorrer, para defender-se, a meios encantatórios,
a meios que a libertam momentaneamente mas que ao mesmo
tempo a afundam ainda mais, fazendo com que fique intimamente
solidária do mundo mágico de que ela pretende alforriarse
ao tornar-se cada vez mais magia (“O ser interior combate continuamente
larvas gesticuladoras. Ele se vê subitamente esvaziado
delas como de um grito, como de detritos levados por um furacão
repentino. Mas a invasão logo recomeça por baixo...”)
O mundo de Michaux é a um só tempo espontaneidade imprevisível
e inércia infinita. Espontaneidade e passividade são as
duas características do mundo mágico. A consciência perdeu-se entre
as coisas. Ela própria tornou-se uma coisa. Não tem mais limites
nem formas. Tende ainda a uma certa finalidade, mas realiza-a por
meios absolutos. Ao mesmo tempo, tudo é possível: é a ilusão do ser
interior que realiza tudo o que imagina – e nada é possível pois, tomado
na espessura da matéria, o espírito nada mais é senão paciência
petrificada, indiferença ao abismo, massa viscosa que não cresce
mais. A objetividade tão estranha de Um certo Plume (Un certain Plume. Paris:
Gallimard, 1938.), de Viagem à
grande garabagne
(Voyage en Grande Garabagne.Paris: Gallimard, 1936.), de No país da magia exprime este trágico aspecto
da consciência cuja intimidade, em vez de ser vivida e percebida
de dentro, é contemplada de fora, vive em um mundo aberto, não
é nada além de um espetáculo sem referência. Há em todas essas
obras um esforço extraordinário – e um dos mais significativos desse
tempo – para exprimir o homem pela ausência do homem, para
descrever o mundo da realidade humana criando um mundo em
que o homem não pode mais reconhecer-se, imaginando um ponto
de vista do homem absolutamente estrangeiro ao homem. Está
aí também o sonho angustiante da consciência mágica. Ela quer
sair de si mesma, e não pode sair a não ser ao tornar para si mesma
presente um mundo em que ela sempre se encontra. Ela tende a ultrapassar-
se, e ultrapassar-se é para ela espalhar-se por toda parte,
diluir-se em todas as coisas, estar até mesmo onde não está.
Se as intervenções de Henri Michaux nos parecem tão próximas
e interessam nossa sorte, mesmo quando nada de nós está
aparentemente envolvido, é primeiramente porque simbolizam esta
condição geral de nosso destino que só pode encontrar um sentido
por meio do esforço para escapar desse sentido e até mesmo de
todo sentido possível – de maneira que a gratuidade de suas fábulas
e de sua linguagem é o que mais nos importa. Porém, ao mes-
mo tempo, essa gratuidade, essa objetividade sem ressonância, essa
placidez surda e cega faz parte de um movimento que, em sua
outra extremidade, é potência de fúria e tempestade, ansiedade e
desespero, emoção infinita. Não há obra contemporânea em que
a angústia e o fracasso humanos tenham encontrado uma expressão
a um só tempo mais reservada e mais violenta, uma voz mais
altiva e mais trágica. Quem não guardaria a lembrança de Minhas
propriedades
(Mes propriétés. Paris:
Gallimard, 1929.), A noite se move (La Nuit remue. Paris: Gallimard,
1935.), Longínquo interior (Lointain intérieur. Paris:
Gallimard, 1938.), Um certo Plume,
em que se fazem ouvir os lamentos graves e solenes de poemas
como “Canto de morte”?...
A fortuna mais uma vez, a fortuna com língua de óleo, tendo lavado
minhas feridas, a fortuna como um cabelo que pegamos e que trançaríamos
aos nossos, tendo-me pego e unido indissoluvelmente a ela,
de repente quando eu já saboreava a alegria, de repente a Morte veio e
disse: “É hora. Venha.” A Morte para todo o sempre a Morte agora.

Tradução de Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ)

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